Falamos inúmeras vezes aqui que estratégia é porque é um processo mental: é o jeito como profissionais organizam pensamento, percebem o jogo e tomam decisões sobre onde empregar seus recursos limitados.
E exploramos uma série de maneiras para tornar visível aquilo que não se enxerga. Faz sentindo então que de alguma maneira sintetizemos todas essas ideias de maneira clara e acionável. E fazer isso na forma de perguntas. Para fixar a ideia de que estratégia é menos sobre respostas e mais sobre a qualidade das perguntas que somos capazes de fazer sobre o negócio, o mercado, os desafios e as possibilidades reais à nossa frente.
E entre tudo o que trabalhamos até aqui, entendemos que pensar estrategicamente no contexto de negócio envolve ao menos quatro elementos: os recursos que temos, o jogo que escolhemos jogar, o que nos separa da vitória e como superaremos essas barreiras para vencer o jogo.
A resposta a essas perguntas não são fórmulas nem promessas de sucesso. Mas são um convite a organizar o pensamento de forma mais clara e focada nas questões que realmente importam para enxergar melhor e ter mais chances de vencer.
Quem sou eu?
Antes de qualquer ambição, plano de crescimento ou reposicionamento de, existe uma pergunta que precisa ser enfrentada com brutal honestidade: quem sou eu? Essa pergunta, que toda empresa precisa se fazer, parece simples, mas é frequentemente ignorada ou respondida de forma idealizada — com o retrato do que se gostaria de ser, não do que se realmente é.
Muitas estratégias falham não por má execução ou falta de recursos, mas porque foram construídas em cima de uma autoimagem distorcida. Quando exageramos nossos pontos fortes ou ignoramos nossas limitações, acabamos escolhendo caminhos que não conseguimos sustentar. Fazer estratégia exige começar com uma leitura lúcida do presente. Isso não é um exercício de branding, nem uma análise motivacional. É uma prática de autoconhecimento organizacional.
Essa leitura começa com a identificação dos nossos ativos. O que temos a nosso favor? Quais são os recursos, capacidades ou vantagens que estão à nossa disposição hoje? Esses ativos podem ser tangíveis — como uma estrutura de distribuição consolidada, um parque industrial eficiente, dados proprietários valiosos, uma base de clientes fiéis. Mas também podem ser intangíveis — como reputação, marca, cultura, know-how técnico, velocidade de execução, governança ou mesmo o alinhamento interno entre áreas. Todo negócio, por menor que seja, tem algum ativo. O problema é que, muitas vezes, ele não está sendo reconhecido como tal — ou está sendo mal alocado.
É comum, por exemplo, que empresas com marcas fortes subestimem o valor simbólico que construíram ao longo do tempo, tratando marketing apenas como custo. Ou que negócios com alta capacidade técnica deixem de enxergar essa capacidade como alavanca estratégica, por estarem atolados no operacional. Ou ainda que times com culturas altamente colaborativas não percebam isso como um diferencial — até que o crescimento ou uma fusão corroam essa vantagem silenciosa. Mas o contrário também é verdadeiro: muitas empresas superestimam seus próprios ativos, atribuindo-lhes um valor que eles não tem da porta para fora. Nomear os ativos com precisão ajuda a enxergar o que está realmente à disposição para jogar.
Mas tão importante quanto reconhecer nossos ativos é encarar nossos passivos. O que nos limita? O que nos atrasa, dificulta ou bloqueia? Aqui entram gargalos operacionais, estruturas lentas, dependências externas, baixa capacidade de investimento, culturas políticas, lideranças inseguras, marcas mal percebidas, reputações em crise, entre outros fatores. Nem sempre os passivos são visíveis à primeira vista — muitos estão enraizados na forma como a empresa toma decisões, ou nos medos que paralisam seus movimentos.
Negar os passivos é um erro comum. Em nome do otimismo ou da pressão por resultados, muitas organizações preferem ignorar suas fraquezas ou tratá-las como detalhes que serão resolvidos “com o tempo”. Mas estratégia não é um exercício de fé. Ou pelo menos não só – em algum momento, há que se ter é para fazer escolhas sobre um futuro incerto. Mas em essência estratégia é um exercício de foco. E foco exige reconhecer com clareza aquilo que está fora do nosso alcance hoje — para que possamos tomar decisões mais realistas sobre onde concentrar energia.
Reconhecer quem somos de verdade é também um exercício de alinhamento interno. Ajuda a criar uma linguagem comum entre as lideranças, reduz conflitos de percepção e evita que diferentes áreas operem com visões desconectadas sobre o próprio negócio. Uma boa estratégia começa com um diagnóstico claro — e um bom diagnóstico começa com uma pergunta feita sem maquiagem: o que temos, o que nos falta e o que isso significa para a forma como vamos competir?
Além disso, esse olhar para dentro pode revelar potenciais escondidos. Muitas vezes, uma vantagem competitiva está adormecida dentro de um ativo mal aproveitado — ou uma fragilidade estratégica está sendo sustentada por um hábito organizacional nunca questionado. Nomear essas coisas muda a forma como enxergamos o que é possível. Lembrando que nem todo passivo precisa ser resolvido imediatamente. E nem todo ativo será útil na construção da estratégia. Mas é preciso saber que eles existem e reconhecer que serão a fonte da construção das nossas vantagens competitivas.
Portanto, responder à pergunta “quem somos de verdade?” é, portanto, montar um diagnóstico de nós mesmos. Esse diagnóstico não deve ser uma lista infinita de pontos fortes e fracos, mas sim uma leitura crítica e sintética sobre como nossa estrutura, cultura, recursos e capacidades influenciam nosso jogo. Ele serve como base para todas as próximas decisões.
Só depois de responder a isso é que faz sentido olhar para fora. Porque o jeito certo de entrar num jogo depende, antes de tudo, de saber com que peças estamos jogando.
Qual é o jogo que queremos jogar?
Toda estratégia acontece dentro de um jogo — e todo jogo tem regras, limites, jogadores e objetivos diferentes. Mas, antes de entender as regras ou observar os adversários, é preciso responder a uma pergunta mais fundamental: em qual jogo decidimos jogar? Essa pergunta é frequentemente negligenciada, como se a categoria de atuação de uma empresa fosse uma consequência automática do produto que ela oferece. Mas não é. Escolher o mercado certo — e definir com clareza que mercado é esse — é uma das decisões estratégicas mais importantes que uma empresa pode tomar.
Quando falamos em “mercado”, não estamos apenas falando de um setor amplo, como “cosméticos”, “educação” ou “mobilidade”. Estamos falando da delimitação estratégica do espaço competitivo em que decidimos atuar. Qual segmento, qual nicho, qual fronteira estamos assumindo como nossa? Essa definição orienta tudo o que vem depois: o tipo de cliente que buscamos, os concorrentes que importam, os canais que vamos priorizar, os critérios que determinam sucesso.
Em alguns casos, essa escolha é relativamente direta: uma empresa nasce para atender uma demanda já consolidada e se posiciona de forma clara dentro de uma categoria conhecida. Mas mesmo nesses casos, o tempo costuma embaralhar as fronteiras. O que antes era um segmento bem definido pode se tornar difuso diante de novas tecnologias, mudanças de comportamento ou transformações regulatórias. De tempos em tempos, mesmo empresas maduras precisam revisitar essa pergunta: o mercado em que estamos jogando ainda é o mesmo? Ainda faz sentido? Ainda existe?
Em outros casos, especialmente em negócios nascentes ou inovadores, o desafio é maior: o mercado ainda está se formando — ou talvez precise ser inventado. Startups, por exemplo, frequentemente enfrentam o dilema de serem vistas como “estranhas” às categorias existentes. É por isso que tantas optam por criar novas categorias ou por se posicionar como a interseção de duas ou mais indústrias. Definir o jogo, nesses casos, é um movimento de criação — uma tentativa de moldar o espaço competitivo em vez de apenas habitá-lo.
Essa escolha pode parecer abstrata, mas tem consequências extremamente práticas. Uma empresa que se define como parte do “mercado de viagens corporativas” vai operar com métricas, canais e modelos mentais diferentes de uma que se vê como parte do “mercado de mobilidade para empresas”. Uma empresa que se posiciona no “mercado de snacks” toma decisões distintas de outra que se enxerga no “mercado de nutrição prática e saudável”. O jeito como você define seu mercado é o jeito como você vai definir sua estratégia.
Ao escolher um mercado, você escolhe também um campo de batalha. E todo campo de batalha traz seus adversários. Por isso, a segunda parte dessa etapa é entender quem são os concorrentes relevantes dentro do jogo que escolhemos jogar. Não se trata de mapear todo mundo que oferece algo semelhante. Trata-se de identificar aqueles que disputam o mesmo espaço estratégico que você. Às vezes, seu concorrente mais perigoso não é quem vende o mesmo produto — é quem resolve o mesmo problema que você, de outro jeito.
Vale lembrar: o conceito de concorrência estratégica vai muito além da categoria de produto. Netflix e TikTok disputam o tempo das pessoas. Nubank e Apple disputam a interface do dinheiro. iFood e supermercados disputam a praticidade do jantar. Em um cenário cada vez mais fluido, entender quem realmente está jogando o mesmo jogo que você exige uma análise mais profunda do que apenas listar marcas do mesmo setor.
Definido o mercado e identificados os concorrentes, ainda falta uma peça essencial: o cliente. Estratégia é sempre, de algum modo, uma escolha sobre para quem vale a pena competir. Em vez de falar genericamente de “público-alvo”, essa etapa pede uma pergunta mais específica: quem é o cliente que queremos conquistar? Não aquele que aparece nas pesquisas, mas aquele cuja dor ou desejo justifica a existência do nosso negócio. É ele que legitima o jogo — e é a partir dele que se mede vitória ou derrota.
Por fim, tudo isso precisa convergir para uma formulação clara de ambição estratégica. Dado o mercado que escolhemos, os adversários que identificamos e o cliente que queremos conquistar — onde queremos chegar? Que tipo de mudança ou conquista definirá que nossa estratégia deu certo? Pode ser participação de mercado, crescimento de receita, lealdade de um segmento, influência cultural, penetração em um canal, aumento de margem, expansão para uma nova geografia. Não importa o que seja — importa que esteja claro.
Responder à pergunta “qual é o jogo que queremos jogar?” é o que permite transformar o pensamento estratégico em algo situado, concreto, competitivo. Sem isso, a estratégia vira um conjunto de boas intenções desconectadas da realidade. Estratégia real começa com a coragem de escolher um jogo — e com a clareza necessária para entender as implicações dessa escolha.
O que nos separa da vitória?
Boa parte das organizações já tem, mesmo que de forma implícita, uma ambição. Pode ser crescer, aumentar margem, virar referência, expandir território, recuperar relevância, ganhar um novo público. A questão não é a falta de objetivos — é a falta de clareza sobre por que ainda não conseguimos chegar lá. Se a resposta fosse óbvia, o problema já estaria resolvido. Se ainda não está, é porque há obstáculos — e muitas vezes, não estamos enxergando os verdadeiros.
Essa é a terceira pergunta essencial do processo estratégico: o que nos separa da vitória?
É comum tratar essa etapa como uma repetição da análise de “pontos fracos”, mas ela exige um pensamento muito mais direcionado. Não se trata de listar tudo o que está errado na empresa. Aliás, isso não deve ser feito nem na análise de passivos. A questão aqui precisa ser tratada no contexto das decisões já tomadas.
Lembre-se que, seguindo na ordem das perguntas propostas, até agora já entendemos nossos principais ativos, passivos, decidimos o mercado em que queremos atuar, quem são os principais competidores, qual cliente queremos disputar e com qual ambição. É dentro dessas respostas que precisamos ponderar: quais são as barreiras que estão entre nós e a concretização dessas decisões.
Essas barreiras podem estar em diversas camadas:
– Operacionais, como baixa eficiência, canais desestruturados, falhas logísticas.
– Culturais, como falta de alinhamento, excesso de silos, medo de assumir riscos.
– Perceptivas, como uma marca mal posicionada, falta de confiança, distanciamento do consumidor.
– Estratégicas, como uma proposta de valor pouco clara, um modelo de negócios desalinhado ou uma ambição mal formulada.
O que importa aqui é que a análise seja concreta. É por isso que, muitas vezes, a parte mais valiosa desse processo está em nomear com precisão o que nos separa da vitória. Dar nome às barreiras muda nossa relação com elas e deixa claro o que precisamos enfrentar.
Mas há um passo ainda mais profundo que precisa ser dado na sequência: identificar a causa raiz. A maioria das barreiras levantadas provavelmente não são os problemas, mas sim os sintomas. Vendas baixas, por exemplo, podem ser sintoma de uma falha na proposta de valor, de um canal ineficaz, de um posicionamento mal compreendido, de uma segmentação ruim, de um discurso desalinhado — ou tudo isso ao mesmo tempo. Tratar o sintoma é mais rápido, mais fácil, mais visível. Mas é a causa raiz que decide se uma estratégia será transformadora ou apenas paliativa.
Encontrar a causa raiz exige um esforço deliberado de investigação. É preciso cavar mais fundo, perguntar mais vezes “por quê?”, resistir à tentação de aceitar a primeira resposta. Muitas organizações se acomodam com diagnósticos superficiais porque isso permite manter as estruturas como estão – e nosso cérebro apressado agradece.
Esse diagnóstico também ajuda a alinhar a organização. Quando todos compartilham a mesma leitura sobre o que está travando o progresso, é mais fácil coordenar esforços e evitar dispersão. Times que não enxergam o mesmo problema acabam propondo soluções conflitantes, atuando em ritmos diferentes e desperdiçando recursos preciosos. Uma boa estratégia precisa de um centro gravitacional — e esse centro geralmente está no problema que decidimos resolver.
Até porque, é preferível atacar uma única causa com profundidade do que se perder tentando resolver tudo ao mesmo tempo. Novamente: a pergunta “o que nos separa da vitória?” não serve para gerar uma lista — serve para criar um ponto de partida claro para a ação estratégica.
Em resumo, essa etapa do processo é onde a estratégia mais encara a realidade. Onde encaramos os entraves reais que precisam ser superados para que a ambição se torne viável. Sem essa clareza, qualquer estratégia tem bem menos chance de funcionar. Porque só dá para traçar o caminho certo quando se entende, de verdade, o que está entre nós e a linha de chegada.
Como vamos vencer?
Depois de entender quem somos, escolher o jogo e encarar o que nos separa da vitória, chega o momento da pergunta que muitos gostariam de responder primeiro, mas que só pode ser feita depois de atravessar todas as outras: como vamos vencer?
Essa é a etapa em que o pensamento estratégico se transforma em decisão de um curso padronizado de ações. Afinal, estratégia não é uma declaração de intenções. É a escolha de um caminho específico, com todas as suas renúncias embutidas. E esse caminho precisa ser sustentado por uma lógica de vantagem competitiva. A pergunta fundamental aqui é: o que temos — ou podemos construir — que nos permite competir e vencer?
Lembrando que a vantagem competitiva não precisa ser revolucionária. Apesar de inovação ser um motor muito evidente de diferenciação, nem toda estratégia precisa se propor a reinventar a roda. Inclusive, muitas estratégias falham por tentar criar diferenciais que só existem no papel. Outras por tentar copiar o modelo dos concorrentes sem entender o que os sustenta. Vencer exige fazer escolhas que fazem sentido para a nossa realidade, a do nosso mercado, dos nossos competidores e, especialmente dos nossos clientes.
A partir dessa clareza, o próximo passo é traduzir essa vantagem em decisões concretas. Toda boa estratégia precisa se materializar nas principais alavancas do negócio. As mais comuns — embora não únicas — são:
• Produto: O que vamos oferecer, e com quais atributos, funcionalidades, promessas ou experiências embutidas? O produto traduz a proposta de valor de forma tangível. Um produto desalinhado com a vantagem estratégica gera frustração e dispersa recursos.
• Canal: Por onde vamos entregar essa proposta? Canais não são neutros — cada escolha aqui comunica algo e determina o tipo de relacionamento que teremos com o cliente. Escolher bem o canal é parte da estratégia, não apenas da logística.
• Experiência do Cliente (CX): Como será a jornada completa do cliente? Onde vamos surpreender? Onde vamos simplificar? Onde não podemos errar? A experiência é onde a estratégia se prova no dia a dia.
• Comunicação: O que vamos dizer — e como vamos dizer? A comunicação estratégica não é só criativa: ela é coerente com a essência da vantagem, amplifica seus sinais e constrói sua percepção ao longo do tempo.
• Preço (Pricing): Quanto vamos cobrar — e por quê? Evidentemente, o preço não é apenas financeiro: ele posiciona. Um preço muito baixo pode destruir percepção de valor. Um preço muito alto pode impedir acesso. A estratégia precisa sustentar a política de preços escolhida.
• Comercial: Como vamos vender? Com qual discurso, qual força de vendas, quais parceiros? Uma boa estratégia pode morrer na boca de quem vende se não houver alinhamento entre intenção e execução.
Essas áreas são como engrenagens: quando funcionam em coerência, giram com força em direção a um único lugar. Quando estão desalinhadas, a máquina trava. É por isso que estratégia exige integração e foco. Não adianta escolher um posicionamento ousado se o produto não entrega. Não adianta prometer excelência se o canal é frágil. Não adianta inovar no canal se a experiência é genérica. Vencer exige escolher bem as batalhas — e coordenar bem os esforços.
Vale sempre dizer: vencer não exige fazer tudo, mas sim fazer bem aquilo que sustenta sua vantagem. Um erro comum é transformar estratégia em um plano de ação cheio de iniciativas de todos os lados. Estratégia não é volume de trabalho. É coerência entre as escolhas.
No fim, essa é a pergunta que coloca o pensamento estratégico em movimento. Mas só pode ser respondida com qualidade se as anteriores tiverem sido enfrentadas com profundidade. “Como vamos vencer?” não é sobre frases de efeito ou planos genéricos. É sobre fazer escolhas que nos aproximem da vitória — mesmo sabendo que não há garantias – apenas boas apostas feitas com embasamento técnico, analítico e mediadas por um processo coerente.
Case Havaianas
A história da Havaianas nos anos 90 é uma boa forma de mostrar como essas quatro perguntas ajudam a organizar decisões que mudam o rumo de uma empresa. O que parecia apenas uma mudança de comunicação foi, na verdade, o resultado de uma série de escolhas feitas com coerência — sobre o produto, o público, o mercado e o que precisava ser enfrentado para que a marca ocupasse um novo lugar no mundo.
Quem era a Havaianas?
Na época, a Havaianas era uma marca amplamente conhecida no Brasil, com décadas de história e um produto que praticamente todo mundo já tinha usado. O chinelo era barato, durável, confortável, fácil de produzir e amplamente distribuído. Esses eram seus ativos: escala industrial, capilaridade comercial e um produto icônico, mesmo que não fosse tratado assim. Além disso, havia algo intangível — uma ligação espontânea com o jeito de viver brasileiro, mesmo que isso não estivesse sendo explorado como valor.
Ao mesmo tempo, a marca carregava uma série de limitações. Era vista como um item básico, funcional, barato. Estava presente, mas não era desejada. Era lembrada, mas não admirada. Seu espaço era o da necessidade, não o da escolha. O chinelo Havaianas era sinônimo de simplicidade extrema — e isso restringia seu crescimento. Esses passivos não estavam necessariamente no produto, mas na forma como ele era percebido.
Reconhecer esses dois lados — os ativos escondidos e os passivos enraizados — foi o ponto de partida para uma virada importante.
Qual é o jogo que a Havaianas decidiu jogar?
A decisão mais importante foi deixar de disputar o categoria de chinelos baratos e assumir um novo mercado: moda casual com identidade brasileira. A empresa parou de olhar para o chinelo como um item de necessidade e passou a tratá-lo como um acessório. Essa mudança parecia sutil, mas implicava uma reconfiguração completa da forma de pensar produto, canal, preço e comunicação. De um item escondido, o chinelo passou a ser algo para mostrar, combinar e colecionar.
Com essa mudança, evidentemente os competidores mudam. A Havaianas deixou de brigar com marcas genéricas vendidas em supermercados e passou a disputar espaço com marcas que operavam no território da autoexpressão. Isso incluía desde outras sandálias com proposta de estilo — como Ipanema ou Rider — até marcas de tênis, moda urbana, beachwear e até grifes internacionais nos mercados de exportação. O chinelo entrou na disputa por atenção cultural, não apenas por volume de vendas.
O cliente também mudou. A marca começou a mirar um consumidor jovem, urbano, interessado em cultura pop, música, verão, leveza e estilo. Alguém que buscava praticidade, mas que também queria se diferenciar. Não era mais o comprador que colocava o chinelo no carrinho do supermercado. Era o cliente que escolhia modelo, cor, estampa — e que queria que aquilo dissesse algo sobre ele.
A ambição da marca passou a ser clara: entrar em outro patamar. De produto invisível a marca desejada. De funcional a cultural. A meta era ocupar espaço em lojas conceito, em campanhas de moda, em aeroportos internacionais. Ser reconhecida — no Brasil e fora — como uma marca com personalidade própria, com alma leve e estilo próprio. E, com isso, abrir espaço para subir preço, crescer margem e alcançar novos mercados.
O que separava a Havaianas da vitória?
Para chegar nesse novo patamar, a Havaianas teve de enfrentar barreiras bem reais. Internamente, a empresa era estruturada para volume, não para construção de valor. O processo de desenvolvimento de produto era limitado, o time de marketing trabalhava de forma tática e o olhar comercial seguia preso à lógica de preço e distribuição em massa. Faltavam repertório e experiência para lidar com o mundo da moda, da comunicação aspiracional e de canais premium.
No mercado, o desafio era outro: os pontos de venda que a marca dominava — supermercados, farmácias, lojas populares — reforçavam a imagem de produto barato. E as redes que poderiam vender versões mais caras ainda não viam sentido em incluir Havaianas no mix, porque o nome da marca carregava a ideia de “chinelo simples”. A mídia também não via a marca como um símbolo de estilo. Era um círculo vicioso: o canal, o preço e a percepção pública se alimentavam mutuamente.
Romper essa estrutura exigia mais do que um novo discurso — exigia desmontar a forma como o negócio estava organizado e reconstruir as bases que sustentariam o novo lugar que a marca queria ocupar.
A causa raiz é o enraizamento da Havaianas na posição que construiu ao longo de décadas. A Havaianas ocupava um lugar tão consolidado na vida das pessoas que esse papel se tornava um limite. Sua presença massiva, os preços baixos e a familiaridade extrema davam força comercial, mas também fixavam a marca em um território difícil de abandonar. Mesmo com novas iniciativas, tudo ainda era percebido dentro da lógica antiga: um produto simples, popular, sem pretensão. As barreiras de imagem, de canal e de cultura interna eram sintomas dessa mesma raiz — o enraizamento profundo da marca em uma posição que já não correspondia ao espaço que ela queria ocupar.
Como a Havaianas venceria o jogo?
A escolha de como vencer foi tão simples quanto ousada na Havaianas: não negar o que era, mas transformar isso em valor. A marca decidiu que seu diferencial não seria inventar uma nova identidade, e sim reapropriar-se da que já tinha — e ressignificá-la. A aposta foi que o jeito brasileiro, leve, informal e espontâneo, que antes era visto como simples demais, poderia ser transformado em um estilo. A marca tentaria construir sofisticação por meio da democracia: todo mundo usa.
Essa foi a decisão central — o coração da estratégia. Assumir que sua vantagem competitiva sustentável estava justamente no contraste: um produto acessível, com design icônico, profundamente enraizado na cultura brasileira, mas apresentado de um jeito novo, com mais intenção, cuidado e presença. Algo que todo mundo conhece, mas que poucos tinham aprendido a olhar com desejo.
A partir dessa escolha, vieram as manifestações práticas. O produto foi ampliado com novas cores, estampas, colaborações, coleções especiais. A distribuição se reposicionou, com entrada em lojas conceito, pontos turísticos, multimarcas premium, e canais internacionais. A experiência de compra passou a ser pensada para reforçar a narrativa: vitrines bem cuidadas, ambientações solares, atendimento informal e simpático.
Na comunicação, a marca abraçou seu DNA com orgulho e inteligência. Usou humor, valorizou o cotidiano e escalou celebridades sem perder a naturalidade. Transformou o Brasil em ativo criativo — não como clichê, mas como forma viva de se expressar.
O preço acompanhou a percepção. Os modelos básicos continuaram baratos, mas as versões com mais estilo passaram a custar mais — e venderam. A operação comercial ganhou fôlego, com expansão internacional e presença em novos mercados.
Tudo isso sustentado pela mesma ideia: não competir com as marcas de luxo copiando seus códigos, mas criar um território próprio, onde o descomplicado também é desejável — e o acessível também tem valor. Esse foi o caminho da Havaianas para vencer. Não foi uma negação do que ela era. Foi uma nova forma de ser a mesma coisa, com muito mais intenção.