Tomada de decisão na era do conselho abundante

Pense bem: nunca foi tão fácil conseguir uma resposta, certo? Se antes com o Google já parecia fácil, agora em poucos segundos um modelo de inteligência artificial pode sugerir ideias, resolver dúvidas ou oferecer conselhos que antes exigiriam pesquisa cuidadosa ou consulta a especialistas. E, claro, isso não tem como não mudar a forma como tomamos decisões.

Essa transformação foi tema de uma entrevista com Cassie Kozyrkov, ex-Chief Decision Scientist do Google por quase uma década, no podcast Decoder. Em sua newsletter, ela desenvolveu pontos interessantes sobre o que muda na forma como tomamos decisões no contexto de uma abundância de conselhos promovida por IA. Até porque se as respostas estão cada vez mais acessíveis, o verdadeiro desafio passa a ser outro: fazer boas perguntas e saber o que realmente queremos resolver.

Inspirados nessa reflexão, decidimos explorar aqui como a inteligência artificial está mudando o processo de tomada de decisão. A promessa de decisões mais rápidas e informadas convive com riscos reais de superficialidade e delegação excessiva. Em um mundo cheio de conselhos baratos, a vantagem competitiva está cada vez mais em quem

IA e o custo (quase) zero do conselho

Se hoje com um prompt bem formulado qualquer pessoa pode obter sugestões de estratégia, explicações técnicas ou planos de ação, esse cenário cria oportunidades evidentes. A inteligência artificial generativa mudou de forma decisiva o custo do conselho e isso não é pouca coisa.

Profissionais podem explorar inúmeras ideias novas. Líderes podem simular cenários antes de tomar decisões importantes. Estudantes podem esclarecer dúvidas complexas em linguagem simples. A barreira de entrada para obter orientação caiu. Em tese, isso nivela o campo de jogo.

Mas a realidade é mais complexa. O acesso é fácil, mas o uso eficaz não está garantido. A mesma ferramenta que oferece conselhos sofisticados também reproduz respostas genéricas, imprecisas ou simplificadas demais. A IA generativa não entende objetivos pessoais nem prioridades únicas sem que sejam explicados. Quem não souber oferecer contexto recebe o equivalente ao “senso comum da internet”.

Essa diferença cria um novo tipo de desigualdade. Não entre quem tem ou não acesso à tecnologia, mas entre quem sabe ou não usá-la bem. Quem investe tempo para formular perguntas claras, oferecer contexto específico e revisar criticamente as respostas obtém valor real. Quem aceita as primeiras sugestões sem questionamento corre o risco de adotar soluções superficiais ou inadequadas.

Para quem toma decisões, isso representa um desafio estratégico. Não basta ter a ferramenta — é preciso desenvolver a capacidade de explorá-la com discernimento. Significa aprender a delegar parte do trabalho cognitivo para a IA sem abrir mão do papel humano mais difícil: julgar, priorizar, escolher.

Além disso, o baixo custo do conselho cria um paradoxo. Quando tudo é fácil e rápido, cresce a tentação de simplificar demais o processo de decidir. Há decisões que pedem análise cuidadosa, discussão com outras pessoas ou reflexão mais longa. Confiar demais em respostas automáticas pode reduzir a qualidade do debate interno e empobrecer o processo decisório.

Evidentemente, a popularização da IA não elimina o trabalho de decidir. Ao contrário, torna mais visível quem dedica atenção ao processo e quem o trata como uma formalidade. Em um mundo onde todos podem ter acesso a bons conselhos, a vantagem competitiva passa a depender menos de quem pergunta e mais de quem pergunta melhor.

O valor das perguntas e do contexto

Se a inteligência artificial tornou as respostas mais baratas e acessíveis, ela também elevou o valor de algo muitas vezes subestimado: a qualidade da pergunta. Inclusive, já tratamos disso em um artigo por aqui.

E em um cenário onde qualquer pessoa pode obter uma resposta em segundos, o diferencial não está em ter a informação, mas em saber o que realmente se quer descobrir.

Modelos de linguagem não leem pensamentos. Eles dependem do que recebem como entrada. Perguntas vagas geram respostas genéricas. Falta de contexto produz conselhos que soam plausíveis, mas ignoram detalhes importantes. Mesmo com todo o poder de processamento e o imenso volume de dados, a IA continua limitada pela clareza e especificidade da pergunta que recebe.

Isso coloca a responsabilidade de volta em quem usa a ferramenta. Quem quer boas respostas precisa investir em formular boas perguntas. Significa ter clareza sobre o problema que se quer resolver, sobre as restrições envolvidas e sobre o resultado desejado. É um exercício que exige reflexão prévia e que muitas vezes revela lacunas no próprio entendimento do tema.

Além disso, há um risco cultural embutido. Quando não oferecemos contexto suficiente, a IA tende a reproduzir uma resposta “média”, resultado de padrões aprendidos em grandes volumes de dados públicos. Esse “consenso da internet” pode ser útil em questões amplas, mas falha quando o problema é específico ou quando há necessidade de diferenciação. Em vez de personalização, o usuário recebe uma fórmula genérica.

Ser explícito não é só uma questão técnica. É uma escolha estratégica. Contar à IA qual é o objetivo real, quais são as restrições, o que está em jogo, permite obter resultados mais alinhados às necessidades reais. Não se trata de garantir perfeição, mas de reduzir o ruído e aumentar a relevância.

Essa habilidade de oferecer contexto e definir com clareza o que se busca é cada vez mais valiosa. Em um ambiente onde todos podem acessar as mesmas ferramentas, a vantagem passa a ser de quem sabe instruí-las melhor. Saber perguntar bem não é um detalhe — é o novo filtro de qualidade.

No fim, o custo da resposta caiu, mas o trabalho de pensar sobre a pergunta não desapareceu. Ele se tornou ainda mais central – seu custo subiu. Porque em um mundo cheio de conselhos baratos, quem não domina o próprio contexto acaba aceitando soluções feitas para todos — e para ninguém em particular.

Um assistente de enorme valor

A popularização da inteligência artificial trouxe a promessa de decisões mais rápidas e informadas. Em muitas tarefas, essa promessa se cumpre. Modelos de linguagem ajudam a resumir documentos, sugerir ideias ou comparar opções de forma eficiente. Mas há um limite claro: a IA é uma ferramenta para auxiliar decisões, não para tomá-las no lugar das pessoas.

Delegar é uma habilidade essencial em qualquer contexto de liderança. Saber o que delegar, para quem e em quais condições define o sucesso de muitas organizações. O mesmo vale para o uso da IA. Usá-la bem exige decidir que parte do trabalho pode ser automatizada e qual parte precisa permanecer sob julgamento humano.

Confiar demais na IA como decisora cria riscos que nem sempre são óbvios. Um deles é o de terceirizar valores e objetivos sem perceber. Ao aceitar sugestões automáticas sem questionamento, há o perigo de adotar critérios genéricos ou mal ajustados ao contexto. Em vez de resolver problemas reais, a decisão pode apenas reproduzir respostas médias ou convenientes.

Outro risco é se deixar convencer pela fluência da resposta. Modelos de linguagem são projetados para parecerem confiantes e coerentes. Essa característica é útil para a interação, mas pode esconder erros ou simplificações perigosas. Uma resposta bem escrita não é garantia de qualidade. O decisor precisa manter o ceticismo e a capacidade de verificação.

É importante também reconhecer que a IA não tem metas próprias nem entende as implicações de uma escolha. Ela oferece opções, organiza dados e sugere caminhos. Mas não define o que é certo ou errado, bom ou ruim, prioritário ou secundário. Esses julgamentos continuam sendo responsabilidade de quem decide.

Usar a IA como assistente significa aproveitar sua velocidade e capacidade de análise sem abrir mão do papel humano. É pedir ajuda para explorar cenários, testar hipóteses ou gerar alternativas. Mas é manter sob controle o trabalho de escolher o caminho, considerando valores, contexto e consequências.

Em um ambiente onde a delegação é inevitável, o desafio não é eliminar o uso da IA, mas aprender a usá-la com discernimento. Decidir quem ou o que vai decidir é uma escolha crítica. A IA pode oferecer suporte valioso, mas não substitui a parte mais difícil e essencial: a responsabilidade de decidir.

Conselhos robóticos, decisões humanas

Como abordamos recorrentemente em nossos artigos, decidir não é apenas escolher uma entre várias opções. É um processo que envolve julgar, priorizar e aceitar consequências. Mesmo com o auxílio de inteligência artificial, esse trabalho continua sendo, em sua essência, humano.

E, claro, uma decisão é mais do que uma resposta certa. É uma alocação de recursos que, na prática, é irreversível. Mesmo quando uma escolha pode ser tecnicamente desfeita, o tempo e a atenção gastos não voltam. Cada caminho escolhido implica abrir mão de outros. Esse caráter definitivo exige responsabilidade.

Aqui surge uma distinção importante: julgamento e execução. Julgar envolve decidir como decidir — definir critérios, avaliar riscos, pesar consequências. Executar é a etapa final, onde a escolha acontece. A IA pode ajudar muito na execução, oferecendo opções, simulações e dados. Mas o julgamento continua sendo um trabalho essencialmente humano.

Essa divisão de tarefas não é óbvia para todos. Há uma tendência de transferir para a IA não apenas a execução, mas também o julgamento. Isso cria um risco. Quando se terceiriza a definição de critérios ou valores, abre-se mão da parte mais importante do processo. É aí que decisões se tornam superficiais ou incoerentes com objetivos reais.

Outro aspecto central é ajustar o esforço ao tamanho do risco. Nem toda escolha precisa de um processo elaborado. Muitas decisões do dia a dia são rápidas por necessidade. Mas escolhas importantes exigem mais cuidado. Isso pede uma leitura honesta do que está em jogo e uma disposição para investir tempo proporcional ao impacto esperado.

Clareza de prioridades é indispensável. Sem saber o que realmente importa, qualquer resposta serve — ou nenhuma serve de verdade. A IA pode oferecer opções, mas não define objetivos. Ela não sabe o que é mais importante para cada pessoa ou organização. Cabe ao decisor ter essa clareza antes de pedir ajuda ou avaliar sugestões.

Isso sem esquecer de forma alguma de que no fundo os nossos valores que são o motor invisível das nossas decisões. Mesmo em análises que parecem puramente técnicas, há escolhas subjetivas: o que otimizar, o que evitar, o que privilegiar. Ignorar esses valores ou fingir que eles não existem não elimina sua influência — apenas os torna implícitos e muitas vezes mal definidos.

No final, a IA amplia nossa capacidade de analisar cenários e gerar alternativas. Mas não substitui o trabalho de decidir. A qualidade de uma decisão continua ligada à disposição de quem decide para pensar com cuidado, definir critérios claros e aceitar responsabilidade pelo resultado.

A vantagem de ter clareza

Em um cenário onde conselhos são baratos e acessíveis, mas está posto que a decisão em muita medida ainda será humana, a clareza passou a ser um dos recursos mais escassos. Qualquer pessoa pode gerar ideias ou pedir sugestões a um sistema de inteligência artificial, mas poucas conseguem definir com precisão o que realmente precisam resolver. Essa diferença é o que separa decisões eficazes de decisões superficiais. E também já abordamos esse tema em artigo por aqui.

Clareza não é apenas saber o que se quer em termos gerais. É entender o problema em profundidade, reconhecer restrições, priorizar objetivos e estar disposto a enfrentar os trade-offs que toda escolha envolve. Sem esse trabalho prévio, as melhores ferramentas oferecem pouco valor. Elas podem produzir listas de opções, mas não escolhem a direção certa.

Em muitos casos, o gargalo não é a informação. A IA amplia o acesso a dados e análises de forma inédita. O que falta é a capacidade de usar essas informações para tomar decisões alinhadas com objetivos claros. Sem isso, há o risco de acumular relatórios, recomendações e planos sem nunca sair do lugar.

Essa limitação não é apenas individual. Organizações também enfrentam o desafio de manter clareza coletiva. Equipes podem usar IA para gerar ideias ou planejar ações, mas sem prioridades bem definidas, o resultado tende a ser disperso. A abundância de possibilidades pode virar paralisia ou desperdício de recursos.

Liderar nesse ambiente exige mais do que delegar tarefas para máquinas. Exige definir critérios, comunicar objetivos com precisão e garantir que as escolhas feitas façam sentido no contexto maior. A IA pode ajudar a mapear cenários e testar alternativas, mas não substitui o papel de alinhar a ação a um propósito claro.

Por isso, investir em clareza não é opcional. É uma vantagem estratégica. Em um mercado onde todos podem acessar as mesmas ferramentas, quem consegue formular melhor o problema e definir prioridades com mais rigor sai na frente. É esse trabalho humano que transforma um conselho barato em uma decisão valiosa.

No fim, a inteligência artificial facilita o acesso ao conhecimento, mas não resolve o problema de decidir. Essa tarefa continua sendo, essencialmente, uma questão de intenção, foco e responsabilidade. Clareza não é um luxo: é o que garante que as decisões tomadas façam sentido e gerem resultados reais.


A inteligência artificial tornou o acesso a conselhos e informações mais fácil do que nunca, mas não eliminou o trabalho de decidir. Em vez de substituir o processo humano, ela expõe com mais clareza suas fragilidades. Saber perguntar, oferecer contexto, definir prioridades e assumir responsabilidade continuam sendo tarefas centrais que nenhuma máquina consegue fazer por nós.

Em um mundo cheio de respostas baratas, a vantagem está em quem investe na clareza. Decidir bem exige intenção e critério. A tecnologia pode ampliar nossas capacidades, mas não escolhe por nós. A qualidade das decisões continuará refletindo, antes de tudo, a disposição humana de pensar com cuidado e agir com propósito.

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