Teoria dos jogos e pensamento estratégico [Parte #2]

No primeiro artigo desta série, exploramos como a teoria dos jogos pode nos ajudar a pensar estratégia de forma mais estruturada. Vimos que toda situação estratégica envolve um jogo: há jogadores, regras, informação disponível (ou oculta), decisões a serem tomadas e desfechos possíveis. Mais do que uma ferramenta matemática, a teoria dos jogos funciona como uma lente para enxergar padrões em ambientes competitivos, colaborativos ou ambíguos.

Agora, na segunda parte, damos um passo adiante: em vez de falar da estrutura dos jogos, vamos olhar para os tipos de jogos mais comuns que aparecem no mundo dos negócios. Eles não estão descritos em relatórios ou organogramas, mas estão por trás de decisões fundamentais — como lançar um produto, firmar uma parceria, resistir a uma crise, ou enfrentar um concorrente que muda as regras do jogo. Saber reconhecer que tipo de jogo está sendo jogado é o que permite antecipar movimentos, evitar armadilhas e encontrar saídas mais inteligentes.

Ao longo dos próximos capítulos, vamos apresentar seis jogos clássicos da teoria dos jogos e mostrar como cada um deles se manifesta em casos reais, com empresas e setores diferentes. Em vez de metáforas soltas, trazemos histórias de negócios onde essas dinâmicas aparecem com força total. Porque, no fundo, estratégia é isso: saber onde você está, o que os outros estão fazendo — e qual jogada faz mais sentido, aqui e agora.

Guerra de Cerco: vencer pela resistência

Nem sempre a vitória vem da melhor estratégia ou da proposta mais inovadora. Em alguns jogos, vence quem tem mais fôlego. A guerra de cerco, na teoria dos jogos, é um confronto onde os jogadores arcam com custos constantes, esperando que o outro desista primeiro. Quanto mais tempo dura o conflito, maiores os prejuízos para os dois lados — mas o último a sair leva tudo.

Essa dinâmica aparece com frequência em mercados com competição acirrada, especialmente quando há grandes apostas de longo prazo envolvidas. É o caso clássico da disputa entre Uber e 99 no Brasil — ou entre Uber e Lyft nos Estados Unidos. Durante anos, as empresas atuaram com prejuízo deliberado, subsidiando motoristas e passageiros para ganhar participação de mercado.

Não se tratava de eficiência operacional ou diferenciação clara. O jogo era resistir mais que o outro, queimando caixa em ritmo acelerado. A Uber, com acesso a mais capital e presença global, manteve o ritmo. A 99, apesar de uma estratégia sólida e adaptação local, acabou sendo vendida para a chinesa Didi, como forma de ganhar musculatura para continuar competindo. Nos EUA, a Lyft sobrevive, mas perdeu relevância diante da escalada da Uber.

O custo dessa disputa foi alto para todos: prejuízos acumulados, pressão por capital, e um mercado condicionado a descontos e incentivos difíceis de sustentar. Mas a lógica do jogo era clara: melhor perder dinheiro agora do que perder o mercado para sempre.

A guerra de cerco é perigosa porque desgasta os dois lados, e nem sempre quem vence sai ileso. Ela exige decisões difíceis: saber quando recuar, quando acelerar e, principalmente, quando vale a pena entrar no jogo para começar. Muitas empresas entram em guerras assim sem perceber — e acabam pagando o preço de uma batalha que talvez nem deveriam ter aceitado.

Entry Game: entrar ou defender?

Em muitos mercados, a entrada de um novo jogador pode desequilibrar o sistema. O Entry Game, na teoria dos jogos, trata justamente disso: um jogador avalia se deve entrar em um mercado já ocupado, enquanto o incumbente decide como reagir — ignorar, acolher ou retaliar.

Esse jogo é especialmente comum em setores dominados por grandes players que, por vezes, subestimam a ameaça de um novo entrante. Foi o que aconteceu quando o Nubank começou a oferecer cartão de crédito sem anuidade e atendimento 100% digital. Naquele momento, os grandes bancos poderiam ter reagido reduzindo tarifas, acelerando seus apps ou criando soluções similares. Mas preferiram aguardar — talvez acreditando que era só mais uma fintech entre tantas.

Enquanto isso, o Nubank cresceu, ganhou escala, criou novos produtos e mudou a percepção do que se espera de um banco. Quando os incumbentes reagiram, o jogo já havia mudado. O Nubank não apenas entrou — ele redefiniu as expectativas do consumidor.

Outro exemplo é o movimento da Amazon no setor farmacêutico. Quando anunciou a compra da PillPack, uma farmácia digital americana, a Amazon não precisou dizer muita coisa. O simples sinal de entrada derrubou as ações de grandes redes como CVS e Walgreens, que viram ali uma ameaça real: uma empresa com logística avançada, milhões de clientes e dados de consumo podendo vender medicamentos com entrega rápida e integração com outros serviços.

A Amazon ainda não dominou esse mercado, mas o estrago inicial foi causado apenas pela possibilidade de entrada. Isso mostra que, em alguns jogos, a ameaça é tão poderosa quanto a jogada em si. E os incumbentes são forçados a decidir: vamos retaliar? Vamos acelerar nossa transformação? Ou vamos apostar que é só uma tentativa passageira?

O Entry Game é um teste de leitura estratégica. Ele exige avaliar não só a força do entrante, mas também a própria disposição de defender o território. E, principalmente, entender que em mercados dinâmicos, reagir tarde pode significar sair do jogo.

Jogo de Sinalização e Screening: quando nem todos sabem o mesmo

Nem todos os jogos são disputados em campo aberto. Em muitos casos, um jogador sabe mais do que o outro — e isso muda completamente a lógica do jogo. A teoria dos jogos chama esse cenário de informação assimétrica. E é aí que entram duas estratégias fundamentais: sinalização, feita por quem detém a informação, e screening, usada por quem quer descobrir o que o outro está escondendo (ou escolhendo mostrar).

Um exemplo claro e elegante de sinalização estratégica vem da Tesla. Quando a empresa anunciou, em 2014, que abriria gratuitamente o acesso a suas patentes de veículos elétricos, muitos se perguntaram se aquilo era ingenuidade ou uma jogada de marketing. Mas na lógica da teoria dos jogos, foi um movimento altamente racional: um sinal de confiança e liderança.

Ao abrir suas patentes, a Tesla transmitiu ao mercado a mensagem de que não temia a concorrência — e que estava tão à frente em tecnologia, cadeia produtiva e marca que mais valia criar um ecossistema ao seu redor do que tentar manter tudo sob controle. Esse tipo de sinalização tem um efeito direto: atrai fornecedores, startups e até concorrentes menores para o padrão tecnológico que ela mesma ajudou a definir. E, no longo prazo, isso fortalece sua posição como referência no setor.

Do outro lado, empresas e investidores frequentemente usam estratégias de screening para lidar com incertezas. Um fundo que avalia startups pode pedir roadshows, relatórios, auditorias e provas de tração — não só para avaliar o negócio, mas para forçar o empreendedor a revelar se de fato tem o que diz ter. Da mesma forma, consumidores usam reviews, comparadores e selos de verificação como mecanismos para filtrar produtos e fornecedores num mercado com informação desigual.

Em qualquer mercado onde nem todo mundo sabe tudo, o jogo não é apenas de execução — é de percepção. Jogadores mais sofisticados entendem que comunicar confiança, sem dizer diretamente, é uma arma poderosa. E quem está no lado oposto precisa aprender a ler os sinais certos — ou vai jogar no escuro.

Battle of the Sexes: coordenar é preciso, mesmo com preferências diferentes

Às vezes, o problema não é a competição, mas a dificuldade de alinhar caminhos mesmo quando todos querem estar juntos. O jogo conhecido como Battle of the Sexes representa situações em que dois jogadores querem cooperar, mas têm preferências diferentes sobre como. A cooperação é desejada por ambos — mas, se não houver coordenação, acaba não acontecendo.

Esse tipo de dilema aparece com frequência em parcerias, alianças, fusões e decisões conjuntas entre grandes players. Um dos exemplos mais emblemáticos é a fusão entre AOL e Time Warner, no início dos anos 2000. Ambas as empresas viam valor na união: a AOL trazia base digital e usuários; a Time Warner, conteúdo e estrutura. No papel, parecia perfeito. Mas, na prática, as duas tinham visões diferentes sobre como operar, inovar e monetizar. Faltou alinhamento sobre quem lideraria, que cultura prevaleceria, e como os produtos seriam integrados. O resultado foi um dos maiores fracassos corporativos da história recente.

Outro caso clássico foi a disputa entre os padrões Blu-ray e HD-DVD. Estúdios, fabricantes e distribuidores sabiam que o mercado precisava de um único formato dominante para a tecnologia de vídeo em alta definição decolar. Mas cada grupo tinha seu favorito, e nenhum cedeu no início. Essa falta de coordenação atrasou a adoção do novo padrão por anos, até que o Blu-ray, com apoio da Sony e de grandes estúdios, venceu. Mas todos perderam tempo, dinheiro e oportunidade durante a batalha.

O ponto central desse jogo é que a falta de coordenação tem um custo real, mesmo quando todos querem o mesmo objetivo final. Empresas podem perder mercados, timing e relevância simplesmente por não conseguirem sentar à mesa e escolher um caminho comum.

Jogadores experientes sabem que, nessas situações, ceder um pouco pode significar ganhar muito mais. Coordenar é um ato de equilíbrio — entre preferências, interesses e visões de futuro. Quem entende isso, sai na frente.

Jogo do Pivô: quando um jogador muda as regras

Alguns jogadores não entram no jogo para competir dentro das regras existentes — eles mudam as regras. Esse é o espírito do que a teoria dos jogos chama, de maneira mais informal, de jogo do pivô: quando um agente altera a lógica do mercado, obrigando todos os outros a se adaptarem ou ficarem para trás. É mais do que inovação — é reestruturação estratégica do tabuleiro.

O exemplo mais emblemático das últimas décadas é a Apple com o iPhone, em 2007. A Apple não entrou para competir com os celulares existentes — ela redesenhou completamente o que significava um smartphone. Até então, operadoras controlavam a experiência, personalizavam os aparelhos e dominavam a distribuição. A Apple inverteu tudo: lançou o iPhone sem customizações, vendeu diretamente ao consumidor, centralizou atualizações e criou a App Store, um modelo inédito de distribuição de software.

As outras empresas do setor — fabricantes, operadoras, desenvolvedores — não tiveram escolha: tiveram que se adaptar à nova lógica de mercado, muitas vezes abrindo mão do controle que antes detinham. Algumas, como a Nokia e a BlackBerry, não conseguiram. Outras tentaram copiar, mas já estavam atrasadas.

Esse tipo de jogada é extremamente raro — e extremamente poderoso. Ao mudar as regras, a Apple não apenas ganhou mercado. Ela redefiniu o que seria vantagem competitiva dali em diante: integração vertical, controle de ecossistema, experiência de ponta a ponta. Não era mais uma questão de hardware vs. hardware — era um novo jogo, com nova contagem de pontos.

Jogos de pivô são radicais, mas não aleatórios. Exigem visão de longo prazo, coragem para contrariar o status quo e capacidade de execução impecável. E, uma vez feitos, criam uma nova lógica que os demais precisam adotar — ou correm o risco de ficar fora da próxima rodada.

Com isso, encerramos nossa jornada pelos jogos estratégicos mais recorrentes no mundo dos negócios. A seguir, amarramos os dois artigos com uma conclusão que reforça o que essa lente pode nos ensinar — e por que ela continua tão relevante para quem pensa estratégia.

Jogos de Soma Positiva: quando todos ganham (se souberem cooperar)

Nem todo jogo é uma disputa em que o ganho de um implica a perda do outro. Em jogos de soma positiva, todos os jogadores podem sair ganhando — desde que encontrem uma forma de cooperar ou se coordenar. São situações em que o valor total gerado aumenta quando os participantes se conectam de forma estratégica, criando um resultado melhor do que cada um conseguiria isoladamente.

Na prática, isso acontece quando empresas que poderiam competir decidem colaborar, seja por meio de parcerias, integração de serviços ou interoperabilidade. É comum em setores baseados em plataformas, redes ou ecossistemas, onde o valor não está só no produto, mas na soma das partes que se conectam.

Um bom exemplo é a forma como Prime Video e Apple TV+ passaram a distribuir serviços de streaming de outras empresas dentro de suas plataformas. Embora sejam concorrentes no mercado de streaming, ambas entenderam que permitir que usuários assinem e acessem conteúdos da HBO, Paramount+, Starz e outros serviços por dentro de seus próprios apps cria valor para todas as partes: os parceiros ganham distribuição e alcance; a plataforma se torna mais útil e central para o consumidor; e o usuário ganha praticidade, centralizando assinaturas e pagamento em um único lugar.

Essa é uma escolha estratégica que reconhece o valor do crescimento conjunto. Prime Video e Apple não perdem audiência por abrir espaço para concorrentes — elas ganham recorrência, fidelização e mais tempo de uso dentro de seus próprios ambientes. Isso mostra que, quando bem jogado, o jogo da colaboração é mais lucrativo do que o da exclusividade.

Jogos de soma positiva exigem visão de longo prazo, disposição para dividir e, acima de tudo, confiança de que a cooperação pode ser mais vantajosa do que o confronto. Estratégias assim funcionam melhor quando os participantes reconhecem que, sozinhos, vão mais rápido — mas juntos, podem ir muito mais longe.


Na primeira parte desta série, vimos como toda situação estratégica pode ser entendida como um jogo — com jogadores, regras, informação, decisões e possíveis desfechos. Na segunda, mergulhamos em tipos específicos de jogos que aparecem, de forma recorrente, no mundo dos negócios: desde colaborações de soma positiva até guerras de resistência, ameaças de entrada, sinais sutis, conflitos de coordenação e mudanças radicais no tabuleiro. Cada um desses jogos exige uma forma diferente de pensar, agir e decidir.

Mais do que uma teoria, os jogos são uma forma de leitura da realidade. Eles nos ajudam a entender o que está por trás das decisões dos outros, onde estão os riscos invisíveis e que tipo de resposta uma jogada provavelmente vai provocar. Saber qual jogo está sendo jogado — e qual você quer jogar — é uma vantagem estratégica em si. Porque, em mercados cada vez mais complexos e interdependentes, a melhor jogada nem sempre é a mais óbvia. Mas é sempre a mais consciente.

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