No artigo anterior, vimos que boa parte do fracasso na implementação de estratégias vem da ideia distorcida de separação entre cabeça e mãos, ou seja, entre quem pensa e quem faz. Mas há uma dissonância ainda mais profunda: a que acontece entre as próprias pessoas envolvidas no processo. Estratégias não falham apenas por falta de clareza ou execução. Falham porque são feitas por gente — com opiniões, interesses e sensibilidades diferentes. E isso leva quase sempre a decisões possíveis, mas não ideais.
E essa talvez seja um dos elementos mais invisíveis de toda a discussão de estratégia. A maior parte das conversas sobre a disciplina fala de mercado, concorrência e tecnologia. Poucas falam sobre pessoas. Sobre como decisões são tomadas, disputadas e negociadas dentro das organizações. Sobre como uma boa ideia depende tanto da análise que a sustenta quanto da adesão que a viabiliza. É nessa dimensão humana, invisibilizada, que as estratégias se perdem ou ganham forma.
Se a execução é onde a estratégia se manifesta, as pessoas são o meio pelo qual ela acontece. Entender como lidar com elas — como influenciar, ouvir, convencer e conectar — é o que separa o estrategista técnico do estrategista eficaz. Porque, no fim, toda estratégia é também um trabalho de relacionamento.
A racionalidade que esconde as relações
Por mais que na teoria estratégia pareça um exercício racional (basta entender o mercado, comparar cenários, definir prioridades e seguir o rumo certo), na prática, as decisões estratégicas não são frutos de planilhas. Elas são concebidas em conversas, reuniões e conflitos — entre pessoas com experiências, pressões e incentivos diferentes.
Nenhuma organização decide apenas com base em fatos. As decisões são moldadas por percepções, disputas e emoções. Um plano que faz sentido no papel pode ser rejeitado por contrariar o interesse de alguém. Uma proposta promissora pode ser abafada porque chegou de quem tem pouca voz. Às vezes, a lógica até convence — mas o timing, o contexto ou a forma de dizer definem o resultado final.
O estrategista que ignora esse aspecto humano costuma se frustrar. Acredita que basta “ter razão”, quando na verdade é saber quem tem poder de influência, quem resiste em silêncio, quem apoia sem se comprometer. Isso pode ser lido apenas superficialmente como um jogo jogo político no sentido pejorativo. Mas isso não ajuda. O que ajuda é compreender as relações como ela são e lidar com elas. Todo ambiente organizacional tem suas tensões e equilíbrios, e a estratégia só funciona quando leva isso em conta.
Quando um líder aprova uma mudança de rota, raramente é apenas pelos argumentos técnicos. É pela confiança que tem em quem propôs, pela segurança de que não ficará isolado, pela percepção de risco envolvida. Por isso, tão importante quanto a qualidade da análise é a qualidade das relações que a sustentam.
O trabalho estratégico, no fundo, é sobre criar convergência em meio a visões diferentes. Construir entendimento em torno de algo que não é óbvio para todos. A habilidade de articular, escutar e ajustar é o que transforma uma proposta em decisão. E isso exige algo que não se aprende em frameworks: sensibilidade.
A boa estratégia nasce quando os dados e os argumentos encontram espaço em um ambiente social e político preparado para recebê-los. Um ambiente onde há diálogo, confiança e disposição para revisar pontos de vista. Esse tipo de maturidade relacional é o que sustenta as decisões difíceis, especialmente em momentos de incerteza. Quando as tensões aumentam, são as relações, não os modelos, que mantêm o processo de pé.
Por isso, entender a dimensão humana e política da estratégia não é um complemento — é o centro do trabalho. A análise embasa e dá solidez às decisões, mas são as pessoas que batem o martelo se algo vai florescer ali. A lógica indica o caminho, mas é a relação que faz o grupo andar. Enquanto continuarmos tratando estratégia como um exercício de razão isolada, vamos seguir produzindo ideias brilhantes que morrem por falta de adesão.
Agendas, conflitos e mediações
E, se pararmos para refletir, no contexto de estratégia isso ganha uma dimensão ainda maior. Porque, nunca esqueçamos, estratégia é uma decisão sobre alocação de recursos. E isso se converte em mudança de prioridades, reorganização de equipes, corte de projetos, realinhamento de investimentos. E, claro, tudo isso altera o equilíbrio interno de poder, a visibilidade de alguns e a relevância de outros.
Nesse sentido, as decisões de caráter estratégico têm um impacto simbólico e prático. Ao mexer com recursos ela mexe simultaneamente com egos, identidades, expectativas e agenda. Algumas explícitas, ligadas aos objetivos da organização. Outras implícitas, ligadas aos interesses pessoais de quem decide ou executa. Às vezes, elas estão alinhadas. Em muitos casos, não estão.
Há quem defenda uma ideia porque acredita nela e quem a defenda porque ela o favorece. Há quem resista a uma proposta não por discordar da lógica, mas por temer perder espaço. A política organizacional — tão frequentemente criticada — é, na verdade, o reflexo natural dessas disputas de interesse.
E a realidade é que um bom estrategista sabe que o jogo não é apenas técnico, é político. E faz bem passar a encarar política como algo positivo. Política é, no fundo, uma forma de acomodar interesses conflitantes dentro de acordos possíveis. Autores da década de 40 do século XX trataram isso com bastante precisão. Para John Dunn, “a política é o meio pelo qual as sociedades humanas resolvem problemas que só podem ser resolvidos coletivamente.”. Já Chantal Mouffe dizia que “tarefa da política democrática é transformar o antagonismo em agonismo.”
Essas são diferentes formas de dizer que, partindo do princípio que as pessoas têm visões de mundo e interesses diferentes, mas precisam tomar decisões juntas, o instrumento mediador da política é o caminho mais civilizado. Porque a alternativa a ela é sempre violenta.
Então, quem lida bem com estratégia lê as dinâmicas de poder como parte do contexto estratégico. Entende quem precisa ser convencido, quem precisa ser ouvido e quem precisa ser protegido para que a decisão aconteça. Isso exige empatia e tato. Não para manipular, mas para navegar. E para transformar oposição em participação.
Ignorar esse fator humano e político é uma forma de ingenuidade. Porque é bem claro que estratégias não fracassam apenas porque são mal planejadas ou mal comunicadas. Elas fracassam porque, ao tentar se impor de cima para baixo, desconsideram as forças que moldam o comportamento das pessoas. O resultado é previsível: sabotagem silenciosa, adesão superficial e decisões que nunca se materializam.
Muito mais saudável do que isso seria a admissão do valor do conflito. Ele não é um problema e sim parte natural do processo. O perigo não está na divergência, mas no silêncio — quando as pessoas deixam de discutir porque já não acreditam que suas opiniões importam. Nesse ponto, o consenso aparente é apenas uma forma de desistência. O verdadeiro papel do estrategista é criar o tipo de diálogo que permite que as discordâncias apareçam e sejam resolvidas de forma produtiva.
Nessa visão mais realista sobre o comportamento humano, podemos até refletir sobre a ideia de “alinhamento”. Em muitas empresas, alinhar significa fazer todos repetirem o mesmo discurso. Mas o alinhamento verdadeiro é mais profundo: é quando as pessoas, mesmo partindo de lugares diferentes, conseguem convergir para uma direção comum. Isso não se conquista com slogans, mas com escuta e construção.
Ao reconhecer que existem interesses e agendas diversas, o estrategista amplia sua capacidade de articulação. Ele passa a operar não contra as diferenças, mas com elas. A estratégia deixa de ser um plano idealizado e passa a ser um processo de convergência — em que a inteligência técnica e a inteligência emocional trabalham juntas. Essa é a base para que qualquer decisão coletiva se sustente. Porque, no fim, o que chamamos de estratégia é o resultado das negociações humanas que a tornam possível.
Estratégia é influência
Por tudo isso, uma palavra muito chave dentro do contexto de estratégia é “influência”. Essa talvez seja uma das perspectivas mais subestimada — e ao mesmo tempo mais determinante — para quem trabalha com decisões estratégicas. Porque, na prática, muitas pessoas decidem sobre poucas coisas menores. E poucas pessoas sobre grandes direcionamentos, que, evidentemente, estão diretamente relacionados a decisões menores. Então, faz sentido entender que grande parte do trabalho não é necessariamente decidir, mas exercer influência. Influencia a direção, o ritmo, as prioridades, a forma de pensar. E é essa influência, acumulada ao longo das conversas, que define o que acaba virando decisão.
Influenciar não é convencer pela força, mas pela construção de sentido. É conectar os pontos entre o que você acredita e o que o outro valoriza. É traduzir uma ideia para que ela faça sentido dentro das referências de quem precisa aprová-la ou executá-la. Essa capacidade de moldar percepções é o que diferencia quem apenas propõe de quem realmente move o processo.
Muitos que trabalham com estratégia dominam a lógica, mas falham na empatia. Sabem explicar o “porquê” de uma decisão, mas não percebem o que o outro escuta quando ela é dita. Cada pessoa lê uma proposta à luz das próprias experiências e percepções de risco. Onde um diretor financeiro enxerga risco um de marketing pode enxergar oportunidade; um de operações, complexidade. Ignorar essas lentes é desperdiçar a chance de conectar. O papel do estrategista não é impor uma narrativa única, mas construir uma visão que diferentes perspectivas possam compartilhar.
Influência também depende de tempo e confiança. Ideias raramente ganham adesão na primeira apresentação. Elas precisam ser maturadas, discutidas, testadas informalmente. O bom estrategista entende que convencer é um processo, não um evento. Ele planta a ideia em conversas menores, mede as reações, ajusta os argumentos e identifica aliados. Quando a decisão chega ao fórum formal, ela já não é uma proposta isolada — é um consenso em formação.
Assim como se confunde politica com “jogo sujo”, há um equívoco comum em tratar influência como manipulação. São coisas diferentes. Manipular é fazer o outro agir sem entender por quê. Influenciar é fazê-lo agir porque entende o sentido. O primeiro destrói confiança; o segundo a reforça. Em ambientes complexos, onde o estrategista depende de múltiplos stakeholders, a confiança é o ativo mais importante. Sem ela, qualquer vitória é temporária.
Exercer influência também significa lidar bem com resistência. Nem toda discordância é sinal de obstáculo. Às vezes, ela revela um ponto cego, uma preocupação legítima, uma condição de sucesso que ainda não foi endereçada. O estrategista maduro ouve para ajustar, não apenas para responder. Ao incluir vozes dissonantes, ele não enfraquece sua proposta — a torna mais sólida.
No fim, a influência é o mecanismo que conecta o pensamento à ação. É o que faz uma ideia sair do campo das intenções e entrar no da implementação. Estratégia sem influência é apenas uma opinião bem estruturada. Já quando a influência funciona, a estratégia ganha corpo: ela é entendida, compartilhada e sustentada por quem precisa fazê-la acontecer. O estrategista eficaz, portanto, não é o que fala mais alto, mas o que cria o tipo de conversa que leva as pessoas a se moverem na mesma direção.
Se estratégia e liderança se misturam, não é a toa
Levando tudo isso em consideração, dá para entender melhor porque estratégia e liderança tem uma relação tão estreita. Ambas as atividades lidam com o mesmo desafio: conduzir pessoas por caminhos incertos.
As vezes temos uma leitura rasa de que estratégia tem a ver com planejamento e e liderança com carisma. Nenhum dos dois é verdade. Estratégia é fazer escolhas e assumir riscos. Liderança… também. E, além disso, é criar condições para que essas escolhas possam ser implementadas e sustentadas. Não adianta desenhar um caminho se ninguém quiser ou conseguir segui-lo. Por isso, a liderança é o meio pelo qual a estratégia ganha tração.
Os grandes estrategistas da história — de empresas, de guerras ou de esportes — não foram apenas bons analistas. Foram líderes capazes de inspirar confiança. Confiança para mudar, para insistir, para enfrentar o desconforto das transições. Estratégias sempre exigem algum tipo de ruptura, e rupturas geram medo. O estrategista que não entende o papel emocional do medo pode até ter uma boa ideia, mas não terá seguidores.
Liderar, nesse contexto, não é prometer certezas, mas oferecer direção. É reconhecer a incerteza sem perder a clareza do propósito. É dizer “não sabemos tudo, mas sabemos por que estamos indo”. Essa honestidade dá segurança mais do que qualquer plano perfeito. A liderança estratégica nasce dessa combinação: clareza de intenção e humildade diante da complexidade.
Ela também se manifesta na forma de tomar decisões. Um bom líder não busca unanimidade, mas comprometimento. Sabe que decisões estratégicas raramente agradam a todos. O que importa é garantir que, depois de escolhidas, sejam defendidas com coerência. Esse comprometimento não vem da hierarquia, mas da sensação de pertencimento. Quando as pessoas participam da construção, mesmo que discordem de parte do caminho, tendem a sustentá-lo.
Há uma diferença importante entre comandar e liderar. Comandar é dar ordens e cobrar resultados. Liderar é criar contexto, é influenciar positivamente. Em ambientes complexos, o controle é sempre parcial. O que o líder pode fazer é moldar o ambiente de forma que as boas decisões emerjam naturalmente — e as ruins se corrijam rápido. Essa é a essência da liderança estratégica: menos sobre controlar o que cada um faz, mais sobre desenhar sistemas onde as pessoas queiram fazer o certo.
O estrategista que compreende isso se torna um líder mais completo. Ele entende que sua função não é apenas definir o rumo, mas sustentar o sistema social que o torna possível. Ao mesmo tempo, o líder que compreende a lógica da estratégia ganha clareza sobre suas próprias decisões. No ponto em que se encontram, liderança e estratégia deixam de ser papéis distintos e passam a ser o mesmo exercício: alinhar pessoas em torno de um futuro possível e conduzi-las até lá, passo a passo.
E, nesse sentido, as habilidades que sustentam um bom estrategista são menos técnicas do que humanas. Modelos, frameworks e análises ajudam a estruturar o pensamento, mas são as interações que determinam se uma boa ideia vai prosperar ou morrer na mesa de discussão.
A empatia é o ponto de partida. Não se trata de ser simpático ou de evitar o conflito, mas de compreender genuinamente o ponto de vista do outro — o que ele teme, o que valoriza, o que o move. O estrategista que enxerga o contexto emocional das pessoas com quem trabalha ganha uma vantagem enorme: entende por que certas ideias encontram resistência, mesmo quando fazem sentido no papel. Muitas vezes, a oposição a uma proposta não é racional, mas identitária. Toca em algo que ameaça a forma como a pessoa se vê na organização. A empatia permite lidar com isso de maneira construtiva, sem personalizar o embate.
Escutar ativamente é o complemento natural da empatia. Em processos de decisão, o impulso é defender a própria ideia, mas o que mais gera progresso é saber ouvir. Escutar ativamente significa não apenas esperar a vez de falar, mas fazer perguntas que ampliam o entendimento e capturar nuances que os outros não dizem explicitamente. Um estrategista atento percebe quando um argumento técnico esconde um medo político, ou quando um “sim” protocolar na verdade é um “não” disfarçado. Essa sensibilidade evita ruídos e antecipa barreiras antes que elas se transformem em crises.
E, claro, negociar é a habilidade que traduz empatia em ação. Porque nenhuma estratégia avança sem concessões. A negociação estratégica não é um jogo de soma zero, em que um ganha e outro perde. É o processo de encontrar uma forma de avançar juntos, mesmo que ninguém tenha tudo o que queria. Bons estrategistas sabem construir acordos sustentáveis — aqueles em que cada parte entende o valor do que está ganhando e o motivo de abrir mão do resto. Isso exige clareza sobre o essencial e flexibilidade sobre o acessório. Quem tenta vencer em tudo, invariavelmente perde no todo.
Por fim, a comunicação interpessoal clara é o fio que conecta tudo isso. Já falamos por aqui longamente sobre como Estratégia é, em grande parte, uma questão de linguagem. Uma ideia só é poderosa se consegue ser compreendida. O estrategista precisa traduzir complexidade em clareza, sem simplificar demais. Isso vale tanto para apresentações quanto para conversas diárias. Falar de forma clara é um ato de generosidade intelectual: não serve para impressionar, mas para alinhar. Quando as pessoas entendem o que está em jogo, é mais fácil que se comprometam.
Essas habilidades tendem a formar um ciclo virtuoso. A empatia gera escuta; a escuta prepara o terreno para a negociação; a negociação bem conduzida reforça a confiança, que por sua vez melhora a comunicação. Sem elas, o estrategista pode até pensar bem, mas dificilmente fará as coisas acontecerem. Com elas, transforma o trabalho de estratégia em algo vivo: um processo coletivo em que as ideias deixam de ser abstratas e passam a se tornar realidade.
O trabalho de estratégia é, no fim, o trabalho de lidar com pessoas — com seus limites, crenças, egos e medos. Não há técnica que substitua isso. As melhores decisões raramente surgem de quem tem mais dados ou frameworks, mas de quem consegue criar espaço para que diferentes visões coexistam e se transformem em algo melhor. Estratégia é diálogo. E o estrategista, mais do que um arquiteto de planos, é um mediador de realidades.
Quem domina o lado humano da estratégia não precisa escolher entre ser analítico ou relacional. Ele entende que um bom raciocínio só ganha força quando encontra escuta, confiança e comprometimento. É nessa interseção entre lógica e empatia que as ideias ganham tração. Porque, no fim das contas, o verdadeiro trabalho estratégico não é convencer pessoas a seguir um plano — é fazer com que elas queiram construí-lo juntas.