No artigo anterior, falamos sobre a importância da linguagem como ferramenta para clarear o raciocínio estratégico. Sem palavras precisas, não há ideia precisa. E sem clareza, não há decisão. Mas clareza não é sinônimo de rigidez. Muitas vezes, o caminho mais curto entre um conceito abstrato e uma boa decisão passa justamente por uma figura de linguagem: a metáfora.
Na prática, estratégia é um exercício de construir pontes entre o que já conhecemos e o que ainda não existe. E esse espaço entre o familiar e o novo pode ser difícil de navegar. É aí que entram as metáforas: elas funcionam como guias cognitivos. Ao conectar ideias complexas a imagens, objetos ou experiências mais acessíveis, elas ajudam a tornar o pensamento estratégico mais palpável, mais visual, mais comunicável.
Uma boa metáfora consegue condensar uma lógica em uma imagem clara. Quando falamos, por exemplo, que determinada empresa “está jogando xadrez enquanto os outros jogam damas”, estamos dizendo muito com poucas palavras. Estamos sugerindo que ela opera com um nível maior de sofisticação, antecipação e complexidade. Não é uma análise técnica — mas transmite, com força, uma impressão estratégica. Em vez de precisar explicar todos os movimentos, a metáfora entrega o raciocínio de forma instantânea.
É por isso que metáforas são tão comuns em ambientes onde se pensa estratégia: elas reduzem a fricção cognitiva. Tornam ideias mais fáceis de lembrar, compartilhar e debater. Quando bem usadas, não apenas comunicam — moldam o raciocínio. Ajudam a enxergar o problema de outro ângulo, a destravar caminhos, a provocar novas soluções.
Mais do que figuras de linguagem, metáforas são figuras de pensamento. Um estrategista que sabe fazer boas analogias consegue saltar mais facilmente entre contextos. É capaz de extrair aprendizados de setores distintos, adaptar soluções vistas em outras indústrias, conectar disciplinas que raramente se cruzam. Assim como no artigo anterior, vamos seguir aqui com Roger Martin, em outro texto em seu blog, defendendo que a habilidade de criar analogias é uma das mais subestimadas — e fundamentais — para qualquer profissional.
Segundo Martin, a estratégia moderna sofre de um excesso de literalidade. Executivos e consultores querem dados específicos, cases do mesmo setor, respostas aplicáveis com precisão matemática. Se o exemplo não for de uma empresa “igual à minha”, ele é descartado. Mas essa obsessão por literalidade paralisa a imaginação. Mata a possibilidade de ver o novo.
Em parte, isso ajuda a explicar por que muitos estrategistas se tornaram mais operadores de frameworks do que pensadores. A metáfora bem utilizada é um bom antídoto: ela abre espaço para o novo, expande o vocabulário da imaginação estratégica, aproxima ideias distantes.
E mais: em um mundo saturado de informação e complexidade, a metáfora é também um instrumento de síntese. Em vez de mais uma planilha, mais um slide ou mais um gráfico, ela oferece uma imagem. Algo que cola. Que circula. Que permanece. Como aquela marca que se diz “ponte entre gerações”. Ou aquela empresa que enxerga sua operação como “um organismo vivo”. Pode ser exagerado, até clichê, mas ajuda a fixar uma intenção.
É por tudo isso que a metáfora é tão presente no vocabulário de quem pensa e faz estratégia. Porque ela não só traduz, mas provoca. Não apenas facilita, mas transforma. E, quando bem utilizada, é uma poderosa ferramenta de construção de sentido.
Mas é aí que mora o risco. Porque o mesmo instrumento que pode dar forma a uma ideia pode também obscurecê-la e virar uma espécie de cortina de fumaça.
O perigo de se afogar na imagem
Toda metáfora carrega consigo uma promessa de facilitar o entendimento, de tornar algo abstrato mais próximo, mais digerível. Mas também há um risco implícito. Porque ao tornar um conceito mais acessível, ela pode acabar disfarçando sua complexidade. Ao simplificar, pode distorcer. E, ao ser repetida demais, pode se tornar um substituto da ideia — em vez de sua ponte.
Esse é o perigo de se afogar na imagem. De esquecer que a metáfora é uma ferramenta e não a própria estratégia. Que ela serve para iluminar um raciocínio, não para se tornar o raciocínio. Quando a imagem toma o lugar da ideia, o pensamento estratégico perde substância. Vira estética, não lógica.
Outra forma de entender isso é que, quando bem usadas, as metáforas funcionam como pontes entre o pensamento e a ação. Mas, quando mal calibradas, fazem parecer que uma ideia foi compreendida, quando na verdade só foi decorada. Ajudam a comunicar, mas atrapalham a decidir.
É o que vemos quando a estratégia é explicada apenas por meio de uma metáfora. O líder sobe no palco e diz: “Nossa estratégia é ser o GPS dos nossos clientes.” Ou: “Queremos ser o Waze do mercado.” A imagem é instigante. Parece fazer sentido. Mas ninguém ali sabe exatamente o que isso quer dizer. É sobre mapear caminhos? Antecipar problemas? Mudar rotas? Reduzir tempo? Lidar com dados em tempo real? Tudo isso? Nada disso?
A metáfora cumpre um papel importante: facilita o engajamento, ajuda a memorizar, dá um ar de coesão. Mas, se não for traduzida em decisões, prioridades e ações, ela se esvazia. Pior: se torna um escudo contra o questionamento. Afinal, quem vai ser o chato de dizer que “Waze do mercado” não quer dizer nada?
Isso também acontece com metáforas mais consolidadas, como “a guerra”, “a máquina”, “o jogo”. São imagens antigas, familiares, muitas vezes úteis. Mas que, quando aplicadas de forma automática, levam a padrões mentais pouco saudáveis: confronto constante, rigidez operacional, foco exclusivo em vencer.
Quantas vezes já ouvimos alguém falar que “o mercado é um campo de batalha”, que é preciso “atacar antes”, “flanquear a concorrência” ou “defender território”? À primeira vista, a metáfora ajuda. Ela ativa uma lógica clara de confronto, tomada de posição, antecipação. Mas, se usada sem cuidado, distorce o olhar. Faz parecer que toda estratégia precisa ser agressiva, que todo concorrente é um inimigo, que vencer é sempre eliminar o outro. E isso simplesmente não é verdade em todos os contextos — aliás, muitas vezes é o oposto.
A ideia de empresa como máquina vai na mesma linha. Um sistema bem azeitado, onde cada engrenagem cumpre uma função. Essa imagem favoreceu o pensamento organizacional por décadas — e em muitos casos ainda é útil. Mas também produziu efeitos colaterais. Criou ambientes rígidos, avessos ao improviso. Inibiu a criatividade. Transformou pessoas em peças. Quando levada longe demais, a metáfora se transforma em armadilha.
Há ainda o caso das metáforas vagas, abstratas demais. Termos como “marca líquida”, “organização viva”, “experiência fluida” ou “movimento de cultura” soam sofisticados, mas raramente são acompanhados de clareza operacional. Se não forem traduzidos, criam a ilusão de profundidade. Parecem dizer muito — mas não dizem nada.
É fácil se encantar com a força estética da metáfora. Difícil é mantê-la no lugar certo: como instrumento, não como fim. Como ponto de partida, não como destino. Metáforas devem ser testadas. Dissecadas. Levadas de volta ao chão. Sempre com a pergunta aberta: “Isso nos ajuda a decidir melhor? A agir melhor? A priorizar?”
Porque, no fim das contas, estratégia é escolha. É ação. É consequência. E nenhuma metáfora — por mais elegante, instigante ou provocadora — pode substituir isso. Ela pode ajudar a pensar. Pode ajudar a comunicar. Mas não pode tomar o lugar do pensamento nem da decisão.
Como usar metáforas de forma saudável
Metáforas são instrumentos poderosos para tornar visível o que ainda está confuso. Elas ajudam a nomear, enquadrar, dar forma a ideias que, de outro modo, permaneceriam abstratas demais. E por isso mesmo são ferramentas valiosas no trabalho estratégico — especialmente quando se busca clareza.
Mas é justamente essa força que as torna perigosas. Porque a metáfora não é a estratégia. Ela é só um apoio temporário para o raciocínio. Um recurso de linguagem que ajuda a enxergar. Não pode ser tratada como explicação definitiva, nem como base para decisões.
Um dos maiores riscos é o desejo de esticar a metáfora demais. Ao invés de funcionar como uma lente que ajuda a iluminar o problema, ela vira um molde — e tudo precisa caber dentro dele. A imagem, que deveria apenas apontar uma direção, passa a organizar toda a arquitetura da estratégia. E aí ela deixa de ser útil. Começa a distorcer, simplificar demais, ou levar a analogias forçadas. Pior: muitas vezes embute premissas não discutidas, que passam a operar silenciosamente no raciocínio.
É comum ver isso em metáforas como “nossa empresa precisa virar uma plataforma” ou “vamos construir uma ponte para o futuro”. A princípio, são imagens úteis. Mas, se não forem rapidamente traduzidas em termos concretos — o que exatamente significa ser plataforma? Onde está esse futuro? Como se constrói essa ponte? — a metáfora começa a fazer o trabalho que deveria caber ao pensamento estratégico. Ela vira a ideia. E tudo que foge dela parece estar “fora da estratégia”.
Outra armadilha é a busca de coerência total com a imagem. Quando alguém tenta “levar a metáfora até o fim”, costuma cair numa espécie de teatrinho argumentativo: se chamamos a empresa de “navio”, agora temos que decidir quem é o capitão, qual é o leme, como está o clima, e o que fazer com os marinheiros. A estratégia, que deveria lidar com a realidade concreta, passa a ser conduzida por uma fantasia de linguagem. E, ao invés de clarear, ela começa a confundir.
O uso saudável da metáfora é mais leve e mais ágil. Ela entra para destravar o pensamento — não para ocupá-lo. Serve para clarear o ponto, não para organizar o plano. Ela ajuda a enxergar, mas não substitui o ato de decidir.
Por isso, uma boa prática é sempre voltar do abstrato para o concreto. Use a metáfora como trampolim, não como destino. Se a imagem ajuda a explicar, ótimo. Mas o passo seguinte precisa ser “e o que isso significa, na prática?”. Quais são as ações, escolhas, prioridades que essa metáfora nos ajuda a identificar?
Outro ponto importante é o tipo de metáfora usada. Nem toda figura de linguagem serve ao pensamento. Algumas têm apelo retórico, mas pouca utilidade analítica. É o caso de imagens que soam bem mas dizem pouco — como “virar o jogo”, “mudar o chip”, “romper o ciclo”. Essas expressões enfeitam a conversa, mas raramente trazem novos elementos ao raciocínio. Funcionam mais como slogans do que como instrumentos de clarificação.
Já outras metáforas, mesmo simples, podem ser extremamente potentes. Quando se diz, por exemplo, que uma empresa está tentando “trocar a roda com o carro andando”, a imagem é clara e específica. Ela revela a tensão entre urgência e transformação. Cria uma visualização instantânea do problema estratégico — e pode até ajudar a alinhar decisões em torno disso.
Metáforas também são especialmente úteis para comunicar estratégia. Quando bem escolhidas, ajudam a criar adesão. Transformam abstrações em imagens que circulam, que pegam, que ajudam as pessoas a lembrar do que está em jogo. Mas mesmo aqui o cuidado é o mesmo: não confundir metáfora com mensagem. Uma ideia só se sustenta se puder ser explicada sem a imagem.
Em resumo: metáforas são aliadas da clareza. Mas só quando tratadas como o que são — recursos de linguagem, não estruturas de pensamento. Elas ajudam a ver, mas não podem nos impedir de olhar. Quando respeitamos esse limite, elas ampliam o entendimento. Quando esquecemos dele, viram atalhos que nos afastam da realidade.