Boa parte das estratégias não falha na análise nem nas escolhas. Elas falham depois, quando precisam ser entendidas e aplicadas por quem está no dia a dia. A distância entre formular uma estratégia e fazer com que ela guie decisões reais é muito maior do que parece.
Esse descompasso acontece porque a estratégia nasce de um processo complexo de interpretação do contexto. Líderes analisam dados, discutem cenários, identificam problemas e constroem um mapa mental sobre como a empresa deve competir. Esse trabalho é chamado de sensemaking: o processo de interpretar o ambiente, identificar padrões e organizar problemas de um jeito que permita fazer escolhas.
Nesse estágio, líderes exploram muita informação e tentam responder a perguntas básicas: o que está mudando? O que importa de verdade? Onde estão as oportunidades? Onde estão as ameaças?
A partir dessas respostas, eles constroem um “mapa cognitivo”: uma visão estruturada do contexto, dos trade-offs e das relações de causa e efeito. Esse mapa explica por que certas escolhas fazem sentido e outras não. Ele também define as prioridades que vão orientar a organização.
Esse processo raramente é linear. Envolve conversas, debates, revisões, idas e vindas. As ideias vão ganhando forma conforme diferentes pontos de vista entram na discussão. Muitas vezes, esse raciocínio aparece primeiro em rascunhos rápidos: círculos, setas, notas soltas — tudo que ajuda a organizar pensamento.
O problema é que uma estratégia só existe de fato quando deixa de ser um entendimento individual e se transforma em entendimento coletivo. Esse mapa cognitivo é criado a partir de jornadas de reflexão que poucas pessoas vivenciam. Ele faz sentido para quem participou da construção, mas não é imediatamente compreensível para quem chega depois. E é aqui que a maioria das estratégias começa a se perder: o que é óbvio para quem formulou não é óbvio para quem precisa executar.
Por isso é tão fundamental o trabalho da liderança responsável pela estratégia da empresa, que precisa disseminar as escolhas e sua lógica entre os mais diversos stakeholders. Isso pode ser chamado de sensegiving: o processo de transformar um raciocínio estratégico em algo que outras pessoas compreendam, lembrem e usem para tomar decisões no dia a dia.
Quando essa ponte falha, cada área cria sua própria versão da estratégia. As prioridades se fragmentam. O plano se dilui. E a empresa avança sem coordenação, mesmo achando que “está todo mundo na mesma página”.
O objetivo aqui é explorar como essa ponte é construída — e como líderes podem fazer esse processo de sensegiving ser mais claro, mais concreto e mais eficaz.
Sensegiving e o trabalho de traduzir a estratégia
Se o sensemaking organiza o pensamento, o sensegiving organiza o entendimento coletivo. E, no geral, pode ser tão ou mais difícil conceber a estratégia do que traduzir sua lógica de forma clara o suficiente para que todos consigam agir de maneira coerente.
O primeiro obstáculo é cognitivo. Quem formulou a estratégia conhece o caminho inteiro: as dúvidas, as hipóteses descartadas, os dados analisados, as conversas que moldaram cada escolha. Quando essa pessoa explica a estratégia, tende a achar que está sendo clara — porque está falando a partir de um mapa que já domina. Mas quem escuta não tem esse mesmo mapa mental. Ouve conclusões sem ter visto o caminho que levou até elas.
O segundo obstáculo é organizacional. A estratégia quase sempre implica mudança: novas prioridades, novas formas de trabalhar, novos critérios de decisão. Mudança gera incerteza. E incerteza abre espaço para interpretações diferentes. Se a comunicação não for precisa, cada área vai preencher as lacunas à sua maneira — e a estratégia vira várias pequenas versões concorrentes.
O terceiro obstáculo é emocional. As pessoas não absorvem uma estratégia apenas pelo conteúdo. Elas prestam atenção à intenção, à segurança que sentem, ao grau de confiança transmitido. Sem isso, a estratégia vira um discurso técnico que não muda comportamento.
A ideia de sensegiving é justamente o processo de superar esses três obstáculos. Não é um momento, mas um processo contínuo de tradução. É explicar a lógica por trás das escolhas, esclarecer o que muda e o que não muda, e dar às pessoas o contexto necessário para tomar decisões alinhadas.
Em outras palavras: formular uma estratégia é definir um caminho. Fazer o sensegiving é garantir que todos enxerguem o mesmo caminho, entendam por que ele foi traçado e caminhem na mesma direção. E esse processo tem pelo menos 3 pilares fundamentais de clareza: verbal, visual e pessoal.
Pilar #1: clareza verbal
Pela lógica, o primeiro passo do sensegiving é verbal. Antes de qualquer coisa, é preciso transformar a estratégia em linguagem simples, para garantir total alinhamento e o mínimo possível de distorções.
O problema é que grande parte das comunicações estratégicas usa palavras vagas demais. Termos como “transformação” ou “sinergia” soam importantes, mas correm o risco de não dizer nada sobre o que de fato deve mudar. Cada pessoa interpreta à sua maneira. O resultado é confusão.
Clareza verbal exige especificidade. É preciso explicar escolhas de forma direta:
– O que priorizamos
– O que deixamos de fazer
– Que comportamentos mudam
– Que consequências isso tem
A estratégia precisa caber em frases que as pessoas consigam entender e repetir com precisão. E isso não é tem a ver com simplificação exagerada e sim com rigor comunicacional. Se a mensagem não é simples, ela não é absorvida e não se espalha.
Outro ponto essencial é a lógica causal. Estratégia não é um slogan, é uma sequência de raciocínios. As pessoas precisam entender “por que isso leva àquilo”. Uma boa comunicação estratégica deixa claro o encadeamento: contexto → problema → escolha → implicações → impacto esperado.
Para isso, o líder precisa atuar como editor. Cortar excesso. Reduzir abstrações. Traduzir conceitos. Eliminar adjetivos que não mudam nada. Uma linguagem estratégica eficaz não tenta impressionar; tenta orientar.
E um elemento essencial aqui tende a ser o storytelling. Por mais técnica que uma estratégia seja, ela sempre envolve uma história: onde estamos, por que isso importa, para onde vamos e como vencer. Histórias organizam raciocínio e criam significado. Elas ajudam a transformar escolhas racionais em compromissos reais.
O teste final é sempre o mesmo: alguém que não participou da formulação consegue explicar a estratégia do jeito certo? Se a resposta for não, o trabalho verbal ainda não terminou.
Clareza verbal é o alicerce. Sem ela, nenhuma visualização ou conversa pessoal resolve. Com ela, o resto do sensegiving se torna muito mais fácil.
Pilar #2: clareza visual
Depois da clareza verbal, o segundo pilar do sensegiving é a clareza visual. E aqui existe uma evidência importante: uma estratégia bem visualizada aumenta significativamente a capacidade das pessoas de compreendê-la e aplicá-la. Essa conclusão não é só lógica, mas é teórica. Ela aparece de forma consistente no artigo You Should Be Able to Boil Your Strategy Down to a Single Clear Visualization, publicado na Harvard Business Review por João Cotter Salvado e Freek Vermeulen.
Os autores analisaram 654 grandes aquisições nos Estados Unidos e identificaram um padrão claro: quando a apresentação incluía uma visualização simples e bem estruturada da lógica estratégica do negócio, o mercado reagia muito melhor. Em muitos casos, essa visualização dobrava a reação positiva imediata do valor de mercado. E seu efeito era maior do que o de fotos, gráficos tradicionais ou quaisquer outros elementos visuais.
O motivo é direto: a estratégia se torna um mapa. A mente humana processa mapas com rapidez. Um mapa de estratégia bem construído revela, em poucos segundos, aquilo que a linguagem verbal muitas vezes leva minutos para explicar.
O estudo identificou cinco princípios que tornam esse tipo de visualização realmente eficaz:
- Poucos conceitos centrais. Visualizações com dezenas de caixas geram ruído. As melhores reduzem a estratégia a três ou quatro ideias estruturantes.
- Camadas de detalhe. Cada conceito principal pode ser desdobrado em elementos mais específicos, permitindo “zoom mental” sem perder a estrutura geral.
- Uso disciplinado de cores. Cores não servem para enfeitar. Servem para separar ideias, destacar níveis e tornar a hierarquia visível.
- Conexões explícitas entre os elementos. Estratégia é causa e efeito. Setas, fluxos e relações mostram como as partes se encadeiam e criam lógica.
- Orientação horizontal. O cérebro humano processa horizontais com mais clareza do que estruturas circulares ou verticais complexas. O layout horizontal facilita a leitura do fluxo estratégico.
No artigo, esse conjunto de princípios aparece com muita força no exemplo prático analisado no artigo: o caso do banco sul-africano Capitec. Toda a estratégia — segmentação, proposta de valor, recursos necessários e lógica de atratividade econômica — é explicada em um único slide. Não é um resumo superficial. É a estratégia completa, com relações e causalidades visíveis, organizada de um modo que qualquer pessoa da empresa pode compreender e usar como referência.

Esse tipo de visualização não é um detalhe estético. É um instrumento de alinhamento. Ele reduz interpretações paralelas, torna o raciocínio auditável e ajuda a transformar decisões estratégicas em decisões operacionais. Quando os times passam a olhar para o mesmo mapa, a chance de dispersão diminui.
Clareza visual é, portanto, um dos elementos mais poderosos do sensegiving. Ela transforma a estratégia de um conjunto de frases em uma representação compartilhada — algo que as pessoas conseguem lembrar, explicar e aplicar no cotidiano.
Pilar #3: clareza pessoal
Mesmo com uma linguagem clara e uma visualização bem construída, a estratégia ainda precisa passar por um último estágio: o humano. Estratégia não ganha vida apenas porque foi bem explicada — ela ganha vida quando as pessoas passam a acreditar nela e a agir de acordo com ela.
Esse é o ponto em que o sensegiving deixa de ser comunicação e se torna liderança.
O primeiro componente é a presença. As pessoas precisam ver que a liderança entende a estratégia, acredita nela e está comprometida com as escolhas feitas. Estratégia exige trade-offs, e trade-offs pedem coragem. A equipe percebe rapidamente quando um líder não está totalmente convencido do caminho. Nesse caso, ninguém segue.
O segundo componente é a conversa. Estratégia não é absorvida apenas em apresentações. Ela precisa ser discutida, perguntada, refinada. O diálogo permite que as pessoas conectem a lógica estratégica ao seu próprio trabalho, ao seu time e às suas decisões diárias. Sem essa ponte, a estratégia vira uma abstração distante.
O terceiro componente é a escuta. As pessoas precisam ter espaço para expressar dúvidas, desconfortos e percepções. Não se trata de buscar consenso, mas de construir entendimento. Muitas vezes, a resistência não nasce do desacordo, mas da falta de clareza. Escutar elimina ruídos e ajusta expectativas.
Por fim, existe o componente da coerência. A estratégia precisa ser vista nas ações, não apenas nas frases. Quando a liderança toma decisões que contradizem a narrativa, o alinhamento se desfaz rapidamente. Sensegiving é reforçado pelas evidências do dia a dia: prioridades, investimentos, rituais e comportamentos.
Clareza humana fecha o ciclo do sensegiving. A estratégia deixa de ser algo comunicado e passa a ser algo construído em conjunto. Ela deixa de ser um documento e se torna uma prática. E quando isso acontece, o entendimento vira movimento: as pessoas sabem para onde ir, por que ir e como agir para chegar lá.
Uma estratégia não se sustenta apenas pela qualidade das escolhas. Ela depende da capacidade de transformar essas escolhas em entendimento coletivo, ou seja, sensegiving. Ele pega um raciocínio formulado por poucos e o torna compreensível, acionável e compartilhado por muitos.
Quando a linguagem é precisa, a visualização é clara e a liderança consegue explicar, escutar e mobilizar, a estratégia deixa de ser um documento e vira um mapa comum. Esse mapa orienta decisões, evita dispersão e cria coerência entre as áreas. É o que transforma intenção em prática.
No fim, estratégia é menos sobre o que está escrito e mais sobre o que as pessoas entendem e fazem com isso na prática.
