Em estratégia, independentemente de quais opções foram consideradas ou do quão criativas elas são, a vitória mesmo – pra valer – se dá ou não no campo da execução. Afinal, como você já deve ter ouvido muito, a execução é onde a estratégia se manifesta no mundo real, na prática. Mas, apesar de sua importância óbvia, a maioria das empresas admite que não é boa nisso.
Pesquisas mostram que historicamente a taxa de fracasso na implementação de estratégias foi altíssima. Em 2004, estudos da consultoria Bridges indicavam que 90% das empresas consideravam que tinham falhas de implementação. Em 2020, o quadro melhorou. Mas ainda apenas pouco mais da metade das organizações relatava sucesso. Outro dado crítico: apenas 7% das empresas se consideram excelentes em execução.
Os números expõem fissuras de gestão. Apenas 7% dos respondentes consideram sua organização excelente em implementação. Só 1 em cada 5 líderes revisa a execução mensalmente. E apenas 28% dizem ter um sistema eficaz para medir a implementação. Sem revisão e sem métricas, correção de rota não acontece.
Outro levantamento, publicado em artigo pela Harvard Business Review, reforça o mesmo diagnóstico: entre dois terços e três quartos das grandes organizações têm dificuldade em implementar suas estratégias. O problema, portanto, não está em casos isolados, mas em um padrão estrutural que atravessa setores e geografias.
O problema, no entanto, vai além da dificuldade de colocar planos em prática. Porque existe uma dissonância mais profunda entre o conceito de estratégia e execução, na forma como as empresas as separam, hierarquizam e organizam. Essa dissonância aparece em múltiplos níveis — conceitual, organizacional e prático — e ajuda a explicar por que tantas organizações se perdem entre intenção e realização.
A dissonância conceitual: o mito do cérebro e do corpo
A separação entre estratégia e execução parece tão natural que muitas vezes nem é questionada. O modelo mais comum é a metáfora do corpo humano: a liderança funciona como o cérebro, responsável por pensar e decidir; a organização seria o corpo, que apenas obedece e executa. É uma imagem intuitiva, mas enganosa.
Esse modelo reforça a ideia de que existem duas atividades diferentes: formular e executar. Mas se olharmos de perto, o que chamamos de estratégia e o que chamamos de execução compartilham a mesma essência: fazer escolhas em meio a incertezas, restrições e competição. O executivo que decide entrar em um novo mercado faz escolhas. O gerente regional que define como adaptar a oferta ao seu território também faz escolhas. O atendente que responde a uma situação inesperada com um cliente está fazendo escolhas. Em todos os níveis, a prática é a mesma.
Quando se cria a distinção rígida entre pensar e fazer, cria-se também uma hierarquia de valor. A estratégia, associada ao “cérebro”, ganha status de atividade nobre, intelectual, reservada a poucos. A execução, associada ao “corpo”, passa a ser vista como atividade mecânica, derivativa, sem espaço para julgamento. Essa hierarquia, além de injusta, é falsa. Não existe execução sem escolha, e não existe escolha que não faça parte da estratégia.
O problema dessa dissonância conceitual é que ela molda comportamentos dentro das empresas. Gestores de topo acreditam que podem prever e planejar todas as situações possíveis, criando regras que os demais devem simplesmente cumprir. Funcionários de base, por sua vez, são treinados a seguir instruções, mesmo quando percebem que a regra não faz sentido diante da realidade que enfrentam. O resultado é um sistema frágil, que não se adapta e não aprende.
É nesse ponto que o discurso sobre “boa execução” começa a se distorcer. A ideia de que se pode ter uma “estratégia genial” que fracassa por falta de execução é, na prática, uma contradição. Se a estratégia não se traduz em escolhas viáveis na ponta, então não era uma boa estratégia. A separação permite que líderes se protejam da responsabilidade: quando funciona, é porque a estratégia era boa; quando falha, é porque a execução foi ruim. Cria-se assim um jogo injusto, no qual o crédito sempre sobe e a culpa sempre desce.
Essa estrutura mental é um dos fatores que mais alimentam o desengajamento. Quando os funcionários são tratados como “choiceless doers”, sua contribuição é desvalorizada. Mesmo quando tomam boas decisões em situações difíceis, raramente recebem crédito. Quando algo dá errado, carregam a culpa de uma execução supostamente falha. Não surpreende que pesquisas mostrem baixos níveis de engajamento em muitas organizações: ninguém gosta de ser visto como engrenagem descartável.
A dissonância conceitual também gera impactos práticos no relacionamento com clientes. Empresas que funcionam sob a lógica de comando e execução tendem a impor regras inflexíveis, que ignoram nuances e contextos. Quando o cliente enfrenta uma situação que foge ao script, a resposta costuma ser “não posso fazer nada, é política da empresa”. Esse tipo de interação é resultado direto de um sistema que insiste em separar estratégia de execução, negando autonomia a quem lida com o imprevisto.
Na prática, o que chamamos de execução é apenas a continuação da estratégia em outros níveis da organização. Estratégia é uma cascata de escolhas que se desdobram do topo à base. Cada decisão cria condições e restrições para a próxima. Cada nível faz escolhas que complementam e concretizam as anteriores. Não existe um momento em que o cérebro decide e o corpo simplesmente obedece. Existe um fluxo contínuo de decisões interdependentes.
Reconhecer isso é essencial para desfazer a dissonância. Estratégia não é um plano brilhante no PowerPoint, nem execução é uma lista de tarefas a serem cumpridas sem reflexão. Ambas são faces do mesmo processo: transformar intenções em realidade por meio de escolhas em diferentes níveis. Enquanto mantivermos a ilusão de que são atividades separadas, continuaremos alimentando sistemas engessados, hierarquias artificiais e culturas desmotivadoras.
A dissonância organizacional: o abismo entre o que se planeja e o que se faz
A dissonância entre estratégia e execução não se limita ao discurso ou ao organograma. Ela se revela no dia a dia, no contato com clientes e nos resultados da empresa. Muitas vezes, aquilo que a gestão considera “boa execução” — disciplina em seguir processos, padronização rigorosa, fidelidade a regras — acaba se traduzindo em experiências ruins e destruição de valor.
O caso da Rogers, no setor de telecomunicações canadense, ilustra esse paradoxo. A empresa alterou sua política de suspensão de serviços, restringindo o benefício a seis meses, e aplicou a regra retroativamente sem aviso a clientes antigos. No atendimento, os funcionários eram orientados a repetir: “a regra é a regra, não há exceção”. Para a alta gestão, isso era execução exemplar: todos alinhados e coerentes com a diretriz superior. Para os clientes, foi uma quebra de confiança e um motivo para abandonar a marca.
Essa lógica é um exemplo do que Donald Sull chama de mito da execução como alinhamento. Em muitas organizações, executar significa desdobrar objetivos ao longo da hierarquia e medir seu cumprimento. Ferramentas como management by objectives e balanced scorecard reforçam esse raciocínio. Mas, como mostram as pesquisas de Sull, o problema raramente está na falta de alinhamento vertical. Ele surge da dificuldade de coordenar escolhas horizontais entre áreas e funções, o que mina a execução no conjunto.
Outro exemplo vem da Ford sob Alan Mulally. Sua gestão ficou marcada pelo rigor em processos e pela disciplina em prazos e orçamentos. A execução era irrepreensível do ponto de vista de gestão. O problema é que o resultado foi uma linha de produtos pouco atraente e margens reduzidas. Executar com perfeição uma estratégia ruim não gera valor — apenas acelera a materialização do erro.
Esse mesmo padrão aparece em setores como bancos, seguros e utilities, onde processos rígidos prevalecem sobre o julgamento humano. Funcionários de linha de frente são reduzidos a executores sem autonomia, mesmo quando enfrentam situações que exigem adaptação. O que a gestão chama de “boa execução” se traduz em experiências frustrantes, perda de eficiência e desgaste de marca.
Outro mito recorrente é o de que execução significa seguir o plano. Empresas criam cronogramas detalhados e tratam qualquer desvio como falha. Mas nenhum plano resiste ao contato com a realidade. Executar bem não é obedecer cegamente, mas adaptar com inteligência, coordenar escolhas em tempo real e capturar oportunidades alinhadas à estratégia. Sem essa agilidade, a disciplina se torna teimosia.
Há ainda o risco do que Sull descreve como “alignment trap”: quando problemas de execução levam líderes a dobrar a aposta em métricas e relatórios. O excesso de alinhamento degenera em microgestão, sufoca a experimentação e destrói a flexibilidade necessária. O paradoxo é que quanto mais alinhamento se busca, piores os resultados.
A lição central é que execução não é neutra. Cada processo, cada atendimento, cada decisão operacional é também uma decisão estratégica. Quando a empresa confunde execução com obediência, transforma esforço e disciplina em ineficiência e perda de valor. No fundo, a boa execução só existe quando combina disciplina com coordenação e flexibilidade — ligando decisões locais ao propósito estratégico maior.
A consonância em prática: o caso Haier
Entre os exemplos mais consistentes de empresas que conseguiram superar a dissonância entre estratégia e execução, a Haier se destaca. Menos óbvia do que Toyota e menos citada em livros tradicionais de gestão, a fabricante chinesa de eletrodomésticos construiu ao longo de quatro décadas um modelo que tornou sua execução um prolongamento natural da estratégia.
O ponto de partida da Haier foi uma crise. No início dos anos 1980, a empresa tinha péssima reputação: produtos de baixa qualidade, processos ineficientes e quase nenhuma relevância no mercado global. A virada começou quando Zhang Ruimin assumiu a liderança e tomou uma decisão simbólica: quebrou centenas de geladeiras defeituosas diante dos funcionários, para deixar claro que a qualidade seria o eixo estratégico. Essa escolha não ficou restrita a um discurso. Desde então, a organização foi redesenhada para garantir que cada decisão, em cada nível, reforçasse esse direcionamento.
Com o tempo, a Haier percebeu que qualidade não era suficiente para sustentar crescimento em mercados cada vez mais competitivos. A estratégia evoluiu para um princípio mais abrangente: colocar o usuário no centro. Essa ambição se traduziu em um novo modelo organizacional, batizado de RenDanHeYi. O nome significa algo como “a integração entre os objetivos das pessoas e os objetivos da organização”. A ideia é simples e poderosa: cada funcionário deve estar diretamente conectado ao valor gerado para o cliente, e não apenas a tarefas internas.
Esse modelo elimina a visão tradicional de execução como cumprimento de ordens. A Haier se estruturou em microempresas autônomas, cada uma responsável por uma linha de produtos, uma região ou um serviço. Essas unidades têm liberdade para tomar decisões sobre sua oferta, ajustar preços, criar parcerias e até definir seu modelo de receita. Ao mesmo tempo, continuam ligadas a princípios estratégicos definidos no topo: foco no usuário, inovação contínua e criação de ecossistemas.
O que garante a consonância é a forma como a empresa equilibra autonomia e integração. Cada microempresa é independente, mas opera dentro de um sistema de regras claras — interfaces visíveis que estabelecem como as unidades se relacionam, como compartilham recursos e como reportam resultados. Não há espaço para dissonância organizacional: objetivos e responsabilidades estão claramente atribuídos, e o fluxo de informações permite aprendizado coletivo.
Esse arranjo evita a armadilha comum da dissonância prática. Em muitas empresas, funcionários de base são obrigados a seguir políticas que não fazem sentido diante da realidade do cliente. Na Haier, o oposto acontece: a ponta é incentivada a adaptar decisões de acordo com o contexto, desde que mantenha alinhamento com os princípios estratégicos. Isso significa que a execução nunca é um ato cego. É sempre a aplicação de uma escolha estratégica ao nível local.
Na prática, isso transformou a relação da Haier com inovação. Em vez de depender de laboratórios centrais que decidem o que lançar, a empresa permite que as microempresas experimentem e testem soluções diretamente com os clientes. O fracasso de um produto não ameaça a organização inteira, porque cada unidade tem autonomia para ajustar ou encerrar projetos. Ao mesmo tempo, quando uma inovação dá certo, as demais unidades podem adotá-la rapidamente, graças aos mecanismos de compartilhamento.
O modelo também impacta o engajamento interno. Funcionários não são tratados como “choiceless doers”, mas como empreendedores internos. Cada um é avaliado e recompensado com base no valor que gera para o cliente, e não apenas pelo cumprimento de processos. Isso elimina a injustiça típica da dissonância: quando dá certo, o mérito fica no topo; quando dá errado, a culpa recai na base. Na Haier, mérito e responsabilidade são compartilhados de forma transparente.
Esse sistema tem limitações e críticas. Alguns estudiosos apontam que tamanha descentralização pode gerar redundâncias ou conflitos entre unidades. Outros questionam se o modelo pode ser transplantado para empresas de outros contextos culturais. Mas, mesmo com essas ressalvas, a Haier conseguiu resultados notáveis. Tornou-se a maior fabricante de eletrodomésticos do mundo, ampliou presença global e se manteve competitiva em setores marcados por margens baixas e concorrência intensa.
O case da Haier mostra como a consonância entre estratégia e execução não depende apenas de boas intenções. Ela exige desenho organizacional, clareza de princípios e sistemas de governança que alinhem escolhas em todos os níveis. A empresa superou a visão de que estratégia é privilégio do topo e execução é responsabilidade da base. Em vez disso, criou um fluxo contínuo de escolhas interdependentes, no qual cada funcionário participa da estratégia ao transformar princípios em ações.
Esse é o oposto da dissonância que analisamos até aqui. Não há um plano brilhante no papel e uma execução cega no campo. Há uma rede de decisões conectadas que traduzem ambição em prática de forma consistente. A estratégia não fica confinada a apresentações de liderança, mas aparece no atendimento ao cliente, na inovação de produto e na forma como cada unidade se organiza.
Ao olhar para a Haier, percebemos que consonância não é um estado final, mas um sistema vivo. Não se trata de eliminar erros ou conflitos, mas de garantir que as escolhas em cada nível da organização estejam ancoradas nos mesmos princípios e orientadas para o mesmo objetivo. Isso não elimina as tensões, mas transforma o ruído em aprendizado. É nesse sentido que a Haier oferece um exemplo concreto de como estratégia e execução podem deixar de ser tratadas como campos separados para se tornarem, de fato, uma só prática.
A discussão sobre dissonância entre estratégia e execução mostra que o problema não está em ferramentas ou metodologias isoladas, mas na forma como concebemos a relação entre pensar e fazer. Enquanto a estratégia for vista como um exercício intelectual reservado ao topo e a execução como mera obediência na base, as organizações continuarão presas em um modelo que sufoca a adaptação, desvaloriza o julgamento local e transforma disciplina em rigidez. Afinal, execução não é alinhar objetivos ou seguir planos de forma cega, mas coordenar escolhas, adaptar-se em tempo real e traduzir princípios estratégicos em ações consistentes.
Construir um sistema em que estratégia e execução não se separam, mas se reforçam mutuamente, exige mais do que slogans: demanda desenho organizacional, clareza de princípios e mecanismos que permitam autonomia com responsabilidade. Ao superar a dissonância e enxergar a estratégia como um fluxo contínuo de decisões, as empresas deixam de culpar a execução por seus fracassos e passam a aprender com ela.
Para ter uma estratégia vitoriosa, o desafio não é apenas “executar melhor”, mas dissolver a fronteira artificial que criamos — e, assim, transformar estratégia e execução em uma só prática viva.