O case da Guinness nos últimos anos salta aos olhos de quem acompanha. Enquanto boa parte da categoria de cervejas enfrentava retração, a marca encontrou uma forma de ampliar sua relevância e seu resultado comercial. Não foi uma resposta imediatista à crise da pandemia, nem uma campanha isolada com um grande efeito pontual. Foi uma evolução consistente de estratégia, branding e execução. Tanto que o trabalho foi premiado com ouro na última edição do IPA Effectiveness Awards, competição de efetividade em marketing mais rigorosa do mundo.
Por anos, Guinness vinha percebendo sinais de desgaste nas percepções sobre o produto e nas ocasiões de consumo. O público conhecia a marca, mas a associava a contextos específicos, a determinados perfis de consumidor e a um tipo de experiência muito ligado ao pub. A pandemia só tornou mais evidente uma questão que já existia: a necessidade de expandir essa leitura.
O interessante desse case é observar como a marca fez isso sem abandonar seus ativos históricos, sua estética e sua identidade visual. O movimento foi menos sobre reinvenção e mais sobre ajustar o foco, aproximar-se da cultura e encontrar oportunidades de construir novas associações. Ao acompanhar o trabalho da Guinness de 2020 a 2023, dá para ver uma combinação de decisões que mudam resultado: reavaliação das barreiras de crescimento, posicionamento mais aberto, adaptação do mix de mídia, novas formas de presença cultural e uma estrutura de comunicação pensada para o ano inteiro.
O que se aprende aqui não é uma fórmula e tampouco um único conceito. O valor está na maneira como as decisões foram tomadas e integradas. Ao longo do artigo vamos analisar esse processo e entender como a Guinness transformou uma conjuntura desfavorável em uma rota de crescimento.
Antes de tudo, um diagnóstico certeiro
Antes de decidir o que fazer, a Guinness precisou olhar para o problema de outro jeito. A dificuldade não era apenas a pandemia ou a queda no consumo em bares. Existia uma questão mais estrutural: a percepção sobre quando, onde e para quem Guinness era relevante.
Durante anos, o consumo esteve concentrado em poucas ocasiões e em um perfil de consumidor bastante específico. A marca carregava uma imagem tradicional, associada a rituais e a contextos sociais que não dialogavam com a diversidade de hábitos de quem bebe cerveja hoje. Isso restringia o crescimento. Mesmo sendo um ícone cultural, a Guinness estava presa ao imaginário de uma bebida de inverno, mais masculina, consumida em pubs e com pouca presença na rotina.
Essa limitação aparecia de duas formas claras. A primeira era a dependência do on-trade: muita gente só consumia Guinness no bar porque acreditava que a experiência em casa era inferior. O produto dependia do ritual do bar e isso restringia a penetração em outras ocasiões. Quando a pandemia fechou pubs e interrompeu o consumo em ambientes sociais, isso não criou um novo problema. Apenas expôs o que já existia e vinha sendo adiado.

A segunda era o “problema do verão”. A marca tinha picos de visibilidade em eventos tradicionais, no inverno e em datas como St. Patrick’s Day, mas perdia relevância nos meses mais quentes. Isso não era apenas um problema de sazonalidade, mas um sinal de que a marca não ocupava o espaço cultural de maneira contínua.
Esse diagnóstico importou porque deslocou a discussão de “como reforçar a marca” para “como remover os limites que ela mesma carregava”. Não se tratava de mudar quem a Guinness era, mas de expandir a forma como ela poderia ser percebida. As pessoas não estavam deixando de considerar Guinness porque não gostavam da marca, mas porque não enxergavam quando ela cabia na vida delas em outros momentos.
O crescimento da marca estava limitado por uma leitura estreita sobre seu papel: ocasiões restritas, público restrito e uma experiência muito dependente do ponto de venda. Esse foi o ponto de partida que orientou todas as decisões seguintes: corrigir o que travava o crescimento
A ocasião faz a marca
A partir do momento em que ficou claro que o maior obstáculo para o crescimento não era o produto, mas a forma como as pessoas enquadravam a Guinness em suas vidas, a marca tomou a decisão que define boa parte deste case: rever seu posicionamento e sua presença cultural. Não porque a plataforma anterior estivesse desgastada ou esgotada, mas porque ela reforçava associações que limitavam expansão.
Por quase uma década, “Made of More” sustentou campanhas fortes e reconhecimento internacional. Era uma plataforma de marketing sólida, premiada e com boa aceitação. Ainda assim, havia uma consequência não planejada: essa narrativa trazia consigo um certo peso simbólico. A marca aparecia sempre em registros mais sérios, grandiosos e tradicionais, falando a partir do seu próprio universo. Essa forma de se posicionar não dialogava com a leveza, a informalidade e a variedade de ocasiões onde a cerveja, como categoria, cresceu nos últimos anos.
Foi nesse ponto em que a Guinness deslocou seu papel cultural. A marca deixou de se apresentar como um símbolo do “especial” e passou a refletir os usos reais que as pessoas já faziam dela. A mudança prática aparece primeiro no tipo de referência cultural que a marca passou a adotar. Em vez de tratar Guinness como uma bebida de ocasião formal e quase ritualística, a marca começou a trabalhar com expressões do consumo popular: fotos caseiras de pints, humor sobre o jeito certo ou errado de servir, memes, rituais espontâneos como o “splitting the G” e até críticas públicas a pints mal tiradas. Todos esses sinais já estavam acontecendo fora da marca.
Essa mudança é importante porque responde à pergunta que vinha travando o crescimento: como fazer a Guinness caber no cotidiano de quem não se reconhecia nesse universo tradicional? A resposta não veio de um novo slogan ou de uma ruptura visual, mas de uma mudança de tom. A marca passou a falar a partir do repertório das pessoas. Abandonou uma linguagem grandiosa e solene e adotou uma abordagem mais acessível e social, que incorporava o humor, a leveza e a informalidade do consumo real.

Esse reposicionamento também trouxe outra consequência relevante: a Guinness deixou de criar campanhas que explicavam o valor da marca e passou a demonstrá-lo através de como ela aparece na cultura. As narrativas deixaram de ser sobre a grandeza da Guinness e passaram a ser sobre o que a Guinness significa para quem já bebe. Isso abriu espaço para novas conversas, novos contextos e novos significados.
No fim, o movimento não teve como objetivo reinventar a marca. Ele teve como objetivo resolver uma barreira estratégica: se as pessoas já estavam criando suas próprias formas de usar, interpretar e brincar com Guinness, o próximo passo era deixar que a marca acompanhasse esse comportamento. A mudança foi menos sobre modernizar a marca e mais sobre reconhecer que o papel cultural dela precisava ser outro.
Reconstruir ou reformar? O reposicionamento a partir dos próprios ativos
Uma das decisões mais consistentes da Guinness foi não romper com seu passado. A marca não escolheu um caminho de reinvenção completa. Ela partiu das referências visuais, simbólicas e sensoriais que já faziam parte da sua identidade. Em vez de abandonar seus elementos históricos, encontrou maneiras novas de usá-los. Os ativos mais fortes — a silhueta preta e branca, a harpa e o pint — tornaram-se os pontos de partida para expandir o significado da marca para outros contextos.
Isso aparece de forma clara nas primeiras campanhas desse novo ciclo. Em vez de insistir em narrativas sobre o produto ou seu processo de fabricação, a Guinness passou a usar seus próprios símbolos para criar outras associações. Um pint virado ao contrário, um poste na rua que lembra a espuma, uma prancha de surf na mesma proporção do copo. Esses elementos mantêm o que já é reconhecível, mas colocam o símbolo em um ambiente diferente e mais próximo de novas ocasiões.
O ponto central aqui é que os ativos não serviram apenas como assinatura. Eles se tornaram linguagem. O pint, que antes representava a tradição do pub, passa a representar presença cultural. Ele aparece em referências urbanas, de verão, em ambientes domésticos e em situações cotidianas. O mesmo acontece com a cor, com a iconografia e até com o uso da tipografia. A Guinness não precisou construir novos códigos. Ela só precisou liberar seus códigos para contar outras histórias.

Essa escolha mostra uma forma diferente de expandir a marca: não tentando explicar o que ela é, mas mostrando versões reconhecíveis dela em novos contextos. Os ativos deixam de ser um adjetivo da marca e passam a ser o veículo do reposicionamento. É esse movimento que permite que campanhas tão distintas entre si coexistam e reforcem um mesmo território. Mesmo quando a Guinness fala de verão, de moderação no St. Patrick’s Day ou da espera pelo primeiro pint pós-pandemia, existe um elemento comum e facilmente identificável.
A mudança, portanto, não foi sobre criar novos ativos ou buscar outra identidade visual. Foi sobre ampliar a capacidade dos símbolos da marca de representar novas situações de consumo. Isso garantiu duas coisas ao mesmo tempo: continuidade e flexibilidade. A Guinness continua sendo imediatamente reconhecida, mas o repertório em torno dela fica mais amplo e mais atual.
A força de grandes insights e suas expressões na mídia
Quando a Guinness decidiu reposicionar a marca a partir de novos significados culturais, não bastava mudar narrativa. Era preciso mudar onde e como a marca aparecia. Até então, o investimento era concentrado em poucos meses — inverno, datas comemorativas e grandes eventos. Era uma estratégia eficiente, mas que reforçava o padrão de sazonalidade e restringia a marca a ocasiões muito específicas. A barreira era a mesma: a marca aparecia pouco fora dos contextos em que já era forte.
A Guinness rompeu esse padrão ao deslocar presença de mídia e presença cultural simultaneamente. Duas mudanças aconteceram ao mesmo tempo. A primeira foi ampliar o mix de canais: mais social, mais ativações urbanas, mais influenciadores, mais colaborações culturais e mais pontos de contato fora da TV. A segunda foi ocupar o ano inteiro, em vez de concentrar energia em cinco meses específicos. Esse redesenho mudou o papel da marca na cultura e abriu novos espaços para o consumo.
Os exemplos ficam claros quando olhamos para as campanhas desse período. Welcome Back nasce de uma percepção simples: durante o lockdown, as pessoas não falavam sobre saudade da cerveja, e sim da experiência social do pub. A campanha responde a esse sentimento ocupando TV, outdoors e redes sociais, mas também ações práticas: treinamento de bares, apoio financeiro e a equipe de “pint perfectionists” indo aos pubs preparar a reabertura. Não era só mídia. Era participação.
Em seguida, Lovely Day for a Guinness resolve o problema da marca no verão. Não foi uma tentativa de negar o clima irlandês, mas incorporá-lo como parte do humor local. A campanha saiu do discurso tradicional e ocupou novos territórios: eventos, ativações ao ar livre, outdoors acionados pela previsão do tempo e conversas espontâneas nas redes. A Guinness deixou de ser associada apenas a pubs e inverno e passou a aparecer em situações antes consideradas improváveis para a marca.
O mesmo acontece em St. Patrick’s Day. O insight cultural aqui não é a celebração em si, mas o incômodo do público com o estereótipo do consumo excessivo. A campanha assumiu outro caminho: colocou a moderação no centro e usou Guinness 0.0% como porta de entrada para essa conversa. Aqui a marca atuou de forma combinada: mídia, ações em estádio, parceria com varejo e uma presença digital que amplificou o tema. O produto não foi o argumento; foi uma resposta estratégica a um comportamento social.
E talvez o caso mais emblemático dessa integração entre cultura e mídia seja Don’t Jinx It. A campanha parte do medo coletivo de “zicar” o time de rugby irlandês, e não de um atributo da marca. A Guinness encontrou uma conversa cultural que já existia e ocupou um lugar legítimo dentro dela. Mesmo sem ser patrocinadora oficial do torneio, encontrou relevância com ações em influenciadores, posts, peças de mídia, merchandising e uma linguagem de torcida. Aqui, a mídia não foi apenas canal. Foi parte da narrativa.
O ponto em comum entre todas essas ações é a forma como elas conectam insight cultural e expansão do mix de comunicação. Não existe separação entre o tema e os meios. O insight define o conteúdo da campanha e também onde ela deve estar. A Guinness não tenta explicar o produto. Ela encontra conversas que já estão acontecendo e decide participar delas — na rua, nos bares, nos eventos e nas redes. O crescimento veio dessa combinação: uma marca que lê cultura e uma arquitetura de mídia que acompanha essa leitura.
Mensuração de resultado e a demonstração de efetividade
Ao final desse ciclo, a Guinness não só mudou presença cultural e narrativa. Mudou desempenho comercial. O ponto mais relevante em relação ao case é a qualidade de mensuração. A marca não atribuiu o crescimento apenas à comunicação. Ela isolou variáveis, comparou períodos e analisou mercados de forma independente.
Impressionam os resultados relacionados à marca e como Guinness conseguiu reverter a percepção de marca mais envelhecida e com uma ocasião de consumo muito restrita. Destaque para o crescimento de 7pp em “great for drinking outside”.

A primeira métrica de impacto aparece na penetração. Após a pandemia, a Guinness atingiu o maior nível de consumo da sua história em ambos os mercados analisados: 7,5% de penetração no Reino Unido e 20,1% na Irlanda . Esse dado é importante porque a categoria como um todo estava em queda no mesmo período, o que torna o crescimento ainda mais significativo.
O mesmo movimento se repete em participação de mercado e vendas. Em UK, o NSV cresceu 30% no on-trade e 45% no off-trade. Na Irlanda, o crescimento foi de 22% e 80% respectivamente . Além disso, a marca se tornou líder de vendas no on-trade em UK pela primeira vez em sua história . Esse é um marco importante porque mostra mudança de posição competitiva, não apenas um bom momento comercial.

A mensuração também considerou efeitos de preço. O paper destaca que a Guinness conseguiu aumentar preços entre 10% e 16% ao mesmo tempo em que cresceu volume e valor, algo que as concorrentes não conseguiram reproduzir . Este ponto reforça o efeito de marca e não apenas de elasticidade promocional.
Há ainda métricas associadas a comportamento de marca. A Guinness se tornou a cerveja mais distintiva e de maior percepção de qualidade nos dois mercados e foi a marca mais pesquisada no Google entre as cervejas no Reino Unido no final de 2023 . Em campanhas específicas, como o Rugby World Cup e St. Patrick’s Day, também houve crescimento em menções, vendas e distribuição, especialmente no caso da Guinness 0.0% .
Outro indicador relevante está em ROI. O modelo econométrico, conduzido por Gain Theory, isolou o impacto da comunicação e mostrou retorno crescente ao longo dos anos: ROI de 1,89 em UK e 3,22 na Irlanda . Além disso, o paper demonstra que outras variáveis — preço, clima, promoções ou distribuição — não explicam o desempenho sozinhas. Todas foram controladas no modelo .
Ao olhar para esses resultados como um conjunto, o que se observa é um modelo claro de mensuração: isolamento de variáveis, comparação com a categoria, acompanhamento contínuo e múltiplos indicadores — não só awareness ou métricas de engajamento, mas penetração, share, NSV e ROI. O crescimento não foi atribuído a um único componente. Ele foi tratado como efeito de um sistema de decisões estratégicas.
Esse é um case recheado de aprendizados, de ponta a ponta: definição de problema, insights, reposicionamento, mensuração. Aprender com esse tipo de experiência certamente é das melhores coisas que podemos fazer como evolução da nossa bagagem teórica e repertório prático.
