A ideia de que o objetivo principal de uma empresa é apenas gerar valor para os acionistas na forma de valorização das ações tem sido amplamente difundida e defendida ao longo das décadas. No entanto, essa visão distorcida começou a ser seriamente questionada por ninguém menos que Jack Welch, ex-CEO da General Electric, uma figura emblemática do mundo corporativo e outrora um dos maiores defensores dessa abordagem. Em uma entrevista ao Financial Times em 2009, Welch declarou: “Na superfície, o valor para o acionista é a ideia mais estúpida do mundo. O valor para o acionista é um resultado, não uma estratégia… Suas principais partes interessadas são seus funcionários, seus clientes e seus produtos.”
A afirmação de Welch causou perplexidade, especialmente porque ele é amplamente creditado por transformar a obsessão pelo valor para o acionista em uma prática corporativa comum. Contudo, em uma entrevista posterior à Business Week, Welch elaborou o que realmente queria dizer: “É óbvio que estratégias são o que impulsionam um negócio. Você pode, por exemplo, ter uma estratégia de inovação voltada para produzir os melhores produtos em cada ciclo, ou uma estratégia para se tornar o fornecedor global de baixo custo. Mas você nunca diria aos seus funcionários: ‘Valor para o acionista é nossa estratégia.’ Isso não é uma estratégia que você possa tocar. Não é uma estratégia que ajude você a saber o que fazer quando chega ao trabalho todos os dias. Não energiza nem motiva ninguém.”
Welch continuou explicando que aumentar o valor da empresa a curto e longo prazo é uma consequência da implementação de estratégias bem-sucedidas. Em meio às dificuldades do clima econômico atual, ele ressaltou a importância de questionar o papel das corporações, como elas recompensam as pessoas e para quem trabalham. “O contexto da entrevista ao Financial Times era sobre o futuro do capitalismo. Isso está na mente de todos agora, e é um bom debate a se ter,” concluiu Welch. E é exatamente esse debate que vamos aprofundar nesse artigo.
O QUE SIGNIFICA SHAREHOLDER VALUE?
Desde os anos 70, a ideia de “shareholder value” começou a ganhar destaque, moldando a maneira como as empresas são geridas e medidas. Este conceito defende que o principal objetivo de uma empresa é maximizar o valor para os seus acionistas, frequentemente traduzido como a maximização do preço das ações. Dois dos principais teóricos que impulsionaram essa ideia foram Milton Friedman e Michael C. Jensen.
Milton Friedman, um economista laureado com o Prêmio Nobel, foi um dos primeiros defensores da primazia dos acionistas. Em um famoso artigo de 1970 publicado no The New York Times Magazine, intitulado “The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits”, Friedman argumentou que a responsabilidade social das empresas era aumentar seus lucros, desde que operassem dentro das regras do jogo. Segundo Friedman, qualquer outra forma de responsabilidade social, como a preocupação com o meio ambiente ou questões sociais, deveria ser deixada para indivíduos e o governo, não para as empresas. Para ele, as empresas existem para gerar retorno financeiro aos seus acionistas, e desviar-se desse objetivo é subverter a finalidade básica de um negócio.
Na mesma linha, Michael C. Jensen, junto com William H. Meckling, publicou em 1976 um artigo seminal intitulado “Theory of the Firm: Managerial Behavior, Agency Costs and Ownership Structure”. Eles introduziram a teoria da agência, que explica os conflitos de interesses entre os proprietários (acionistas) e os gestores (executivos) das empresas. A teoria sugere que, para alinhar os interesses dos gestores com os dos acionistas, é crucial vincular a compensação dos executivos ao desempenho das ações da empresa. Esse alinhamento de interesses é alcançado através de pacotes de compensação baseados em ações, bônus por desempenho e outras formas de incentivos financeiros que motivam os gestores a focarem na maximização do valor das ações.
A teoria da agência também trouxe à tona a questão dos custos de agência, que são os custos incorridos pelos acionistas para garantir que os gestores atuem no melhor interesse deles. Isso inclui os custos de monitoramento e os incentivos necessários para alinhar os interesses dos gestores com os dos acionistas. A adoção de práticas de governança corporativa, como conselhos de administração independentes e auditorias externas, são exemplos de mecanismos para reduzir esses custos de agência.
A década de 80 viu a consolidação do conceito de “shareholder value” através de frameworks como o value-based management (VBM). Um dos principais trabalhos que ajudou a popularizar esse conceito foi o paper de 1986 do professor Alfred Rappaport, intitulado “Creating Shareholder Value: The New Standard for Business Performance”. Rappaport argumentava que o sucesso de uma empresa deveria ser medido pela sua capacidade de gerar valor para os acionistas e propunha métodos para quantificar e maximizar esse valor.
O VBM envolve a gestão estratégica e operacional da empresa com o objetivo de maximizar o valor para os acionistas. Isso inclui a tomada de decisões de investimento, financiamento e dividendos que aumentem o valor presente líquido dos fluxos de caixa futuros da empresa. Algumas das ferramentas e métricas populares associadas ao VBM incluem o Valor Econômico Agregado (EVA), o Fluxo de Caixa Descontado (DCF), e a Análise de Valor Econômico (EVA).
O EVA, por exemplo, é uma medida de desempenho financeiro que calcula o lucro gerado acima do custo de capital da empresa. É uma métrica que incentiva os gestores a tomarem decisões que aumentem o valor da empresa a longo prazo, ao invés de focar apenas em lucros contábeis a curto prazo. O DCF, por sua vez, avalia o valor de um investimento com base nos fluxos de caixa futuros esperados, descontados a uma taxa que reflete o risco associado a esses fluxos de caixa. Essas ferramentas ajudam os gestores a avaliar o impacto financeiro de suas decisões e a focar em atividades que realmente criem valor para os acionistas.
O já mencionado Jack Welch, CEO da General Electric de 1981 a 2001, tornou-se um dos maiores expoentes dessa filosofia. Sob sua liderança, a GE adotou práticas agressivas de corte de custos, reestruturação e venda de ativos não essenciais, todas voltadas para aumentar o valor das ações. Welch foi amplamente aclamado como um dos maiores executivos de sua época, precisamente por sua habilidade em gerar retornos excepcionais para os acionistas. Welch implementou uma cultura de desempenho rigorosa na GE, estabelecendo metas ambiciosas e recompensando os executivos que alcançavam essas metas. Ele também foi pioneiro na utilização do EVA como uma métrica chave para avaliar o desempenho da empresa e alinhar os interesses dos gestores com os dos acionistas.
Essa abordagem focada no “shareholder value” levou a uma transformação significativa na GE e em muitas outras empresas que seguiram o exemplo de Welch. A filosofia de Welch e o sucesso financeiro da GE durante sua liderança consolidaram a ideia de que maximizar o valor para os acionistas deveria ser o principal objetivo das empresas. Décadas depois, como já relatado, ele parece ter revisto enfaticamente essa posição.
OS PERIGOS DA LÓGICA DE SHAREHOLDER VALUE
A lógica de “shareholder value” surgiu como uma forma dominante de medir o sucesso corporativo, promovendo a ideia de que o objetivo principal de uma empresa é maximizar o valor para os acionistas. No entanto, essa abordagem, apesar de inicialmente parecer um caminho seguro para prosperidade, pode se transformar em uma armadilha perigosa, colocando empresas e até economias inteiras em risco.
A busca incessante por retornos rápidos e altos leva muitas empresas a tomar decisões precipitadas e arriscadas, sacrificando a sustentabilidade a longo prazo. Uma das armadilhas mais evidentes dessa lógica é a sobrevalorização das ações. Quando o mercado superestima o valor das ações de uma empresa, coloca-se uma pressão insustentável sobre os gestores para que continuem a apresentar resultados extraordinários. Tal situação é um terreno fértil para comportamentos imprudentes e até mesmo fraudulentos.
O próprio professor Michael Jensen, citado pelo seu célebre artigo da Teoria da Firma, escreveu um texto em 2005 sobre os custos de agência associados à equidade supervalorizada. Segundo Jensen, quando as ações de uma empresa estão sobrevalorizadas, os gestores são incentivados a tomar medidas que apenas pareçam satisfazer as expectativas do mercado no curto prazo, muitas vezes às custas da viabilidade a longo prazo. Isso pode incluir investimentos em tecnologias ou projetos da moda, ou até mesmo a manipulação ilegal dos resultados financeiros.
No artigo The Overvaluation Trap, publicado pela Harvard Business Review, o professor Roger Martin dá uma série de exemplos de como a lógica do shareholder value pode levar as empresas a decisões completamente destrutivas para si próprias em médio e longo prazo.
O setor farmacêutico exemplifica bem esse problema. Empresas de grande porte, com valuations elevados, continuam a investir pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, mesmo quando os resultados dessas pesquisas não justificam os gastos. Essa insistência é, em parte, uma tentativa de manter a confiança dos investidores, mas muitas vezes resulta em retornos diminuídos e uma pressão crescente para cortar custos ou encontrar novas fusões e aquisições que possam manter o crescimento das ações.
Outro setor que enfrenta problemas semelhantes é o de tecnologia. A corrida por inovações e novos produtos leva empresas a investir somas exorbitantes em aquisições ou desenvolvimentos que, na prática, pouco agregam ao valor real da empresa. Durante a bolha das “pontocom”, muitas empresas de tecnologia inflacionaram seus valores de mercado ao prometerem crescimentos que nunca se materializaram, resultando em colapsos dramáticos quando a realidade finalmente se impôs.
Adicionalmente, o setor de energia, especialmente o de petróleo e gás, frequentemente se vê preso nessa armadilha. A sobrevalorização das ações força essas empresas a continuar investindo pesadamente em novas explorações e desenvolvimentos, mesmo diante de sinais claros de excesso de oferta e impactos ambientais catastróficos. A pressão para manter altos valores de mercado leva a um ciclo vicioso de superprodução e exploração ambientalmente danosa.
Esses exemplos ilustram como a lógica do “shareholder value”, ao invés de garantir o crescimento sustentável e responsável, frequentemente encurrala as empresas em uma espiral de decisões destrutivas. A longo prazo, essa abordagem não só prejudica as próprias empresas, como também tem impactos negativos profundos sobre a economia e a sociedade em geral. A insistência em maximizar retornos para os acionistas, sem considerar as consequências a longo prazo e os diversos stakeholders envolvidos, pode levar a crises financeiras, perdas massivas de empregos e danos ambientais irreparáveis.
Portanto, é crucial que empresas e gestores revisem essa lógica e busquem um equilíbrio entre retornos financeiros e a sustentabilidade a longo prazo. Adotar uma visão mais holística e inclusiva pode não só prevenir colapsos catastróficos, mas também promover um crescimento mais saudável e duradouro para todos os envolvidos.
A ALTERNATIVA: UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE O PAPEL DAS EMPRESAS
Uma forma de entender o papel das empresas e os objetivos de seus executivos fora da lógica do shareholder value, é reconhecer que o foco principal de uma empresa deveria o seus clientes. Conforme a célebre máxima de Peter Drucker, “o propósito de uma empresa é criar e manter um cliente”. Isso implica que o sucesso de uma empresa não deve ser medido apenas pelo valor de suas ações, mas sim pela sua capacidade de satisfazer as necessidades e desejos de seus clientes.
Nessa lógica, executivos devem, portanto, direcionar seus esforços para melhorar continuamente a experiência do cliente, desenvolvendo produtos e serviços que atendam às demandas do mercado de forma inovadora e eficaz. Este enfoque, que coloca o cliente no centro das estratégias empresariais, tem o potencial de gerar valor sustentável tanto para a empresa quanto para a sociedade em geral.
Adotar essa lógica requer um afastamento das práticas de manipulação do mercado de ações e uma aproximação das práticas de gestão que priorizam o desempenho real no mercado. Isso significa investir em pesquisa e desenvolvimento, inovar nos processos de produção e manter uma comunicação transparente e contínua com os clientes. Quando as empresas se concentram em criar valor real para os clientes, o aumento no valor das ações se torna uma consequência natural, não o objetivo principal.
Um exemplo clássico dessa abordagem é a Apple. Sob a liderança de Steve Jobs, a Apple se dedicou a encantar os clientes com produtos inovadores que transformaram diversas indústrias, como a música, telefonia móvel e computadores pessoais. Essa dedicação ao cliente resultou em um crescimento extraordinário e uma valorização significativa das ações da empresa, demonstrando que é possível ser extremamente lucrativo ao focar no cliente.
Outro exemplo é a Unilever, cujo CEO, Paul Polman, declarou abertamente que a empresa não estava focada em maximizar o valor para os acionistas a curto prazo, mas sim em criar valor sustentável e de longo prazo para os clientes e a sociedade. Essa abordagem gerou inicialmente uma queda no preço das ações, mas, a longo prazo, resultou em uma empresa mais robusta e respeitada no mercado.
Além disso, Marc Benioff, CEO da Salesforce, criticou abertamente a teoria do valor para o acionista, defendendo que a empresa deve priorizar o bem-estar dos clientes e a inovação contínua. Essa filosofia permitiu à Salesforce crescer significativamente, tornando-se uma das líderes em soluções de software empresarial.
Portanto, entender o papel das empresas e os objetivos de seus executivos fora da lógica do shareholder value implica adotar uma visão centrada no cliente. Isso não só promove um crescimento mais saudável e sustentável para as empresas, mas também contribui para um ambiente de negócios mais ético e voltado para o bem-estar coletivo. Ao focar no cliente e inovar continuamente, as empresas podem alcançar um sucesso duradouro que beneficia todos os stakeholders envolvidos.
Em conclusão, por mais que a lógica do “shareholder value” não seja completamente descabida e faça sentido de forma geral, é importante reconhecer como ela não pode ser levada a ferro e fogo e, sobretudo, precisa ser precedida por outras premissas. A mudança de perspectiva de líderes como Jack Welch ressalta a necessidade de estratégias empresariais que priorizem o bem-estar de todos os stakeholders, e não apenas dos acionistas. Esta abordagem mais holística, que considera clientes, funcionários e a sustentabilidade a longo prazo, tem o potencial de gerar um crescimento mais equilibrado e duradouro para as empresas.
Adotar uma visão centrada no cliente, como exemplificado por empresas como Apple e Unilever, demonstra que é possível alcançar o sucesso financeiro sem comprometer valores éticos e sociais. Assim, revisitar e ajustar os objetivos empresariais, colocando a satisfação e as necessidades dos clientes no centro das estratégias, pode não só prevenir comportamentos destrutivos e colapsos financeiros, mas também contribuir para um mercado mais justo e próspero para todos os envolvidos. A verdadeira criação de valor se dá quando as empresas atuam de forma responsável e sustentável, promovendo benefícios amplos e duradouros.