Se você já passou por uma aula da Sandbox, é provável que tenha começado com a mesma provocação que usamos há tantos e tantos anos: com suas palavras, defina o que é estratégia. Não vale buscar no Google. Não vale recorrer a autores consagrados. Queremos a resposta que está na sua cabeça — aquela que guia, mesmo que de forma inconsciente, as suas decisões no dia a dia.
O exercício é sempre revelador. Em salas compostas por profissionais experientes, muitas vezes da mesma empresa e até do mesmo time, as respostas são as mais diversas. Para uns, estratégia é um plano. Para outros, é um objetivo. Para alguns, é uma visão de futuro. Já outros falam de método, de caminho, de intenção. Nenhuma dessas respostas está totalmente errada. Mas nenhuma delas, sozinha, é suficiente.
Essa variação não é apenas um detalhe curioso de sala de aula. Ela revela algo mais profundo: o fato de que, embora seja um dos conceitos mais utilizados no mundo dos negócios, estratégia continua sendo um dos menos compreendidos. E esse ruído conceitual tem um custo real. Quando não sabemos exatamente do que estamos falando, temos dificuldade de ensinar, de aplicar e, principalmente, de tomar decisões com clareza.
O elefante na sala
Não é difícil entender por que essa confusão acontece. O campo da estratégia, apesar de sua centralidade no mundo dos negócios, nunca foi um território de consensos. Diferente de outras disciplinas, como finanças ou logística, que operam com parâmetros mais objetivos, a estratégia se move em um terreno mais abstrato — onde múltiplas abordagens coexistem, às vezes se complementando, às vezes se contradizendo. A própria origem do conceito carrega essa ambiguidade: derivado do grego strategos, originalmente ligado à arte da guerra, o termo já nasce com um pé no pensamento militar, outro no campo da liderança e um terceiro, menos explícito, na ideia de julgamento diante da incerteza.
O livro Safari de Estratégia, de Henry Mintzberg, oferece talvez o retrato mais honesto e abrangente dessa multiplicidade. Em vez de propor uma definição única, o autor apresenta dez escolas de pensamento, cada uma com sua lente, seus pressupostos e sua forma de entender o que é e como se faz estratégia. O livro não tenta resolver a confusão — ele a acolhe, e ao fazer isso, nos convida a enxergar a estratégia como um campo essencialmente plural.
A metáfora que ele usa para introduzir esse argumento é poderosa. Vinda da cultura oriental, ela conta a história de um grupo de cegos que, ao apalpar diferentes partes de um elefante, tentam descrever o que estão tocando. Um que toca a tromba afirma estar diante de uma cobra. Outro, ao segurar uma das patas, conclui estar diante de uma árvore. O que encosta na lateral do animal acredita estar diante de uma parede. Nenhum deles está totalmente errado. Mas todos estão dramaticamente limitados por aquilo que conseguem perceber. O problema, portanto, não está na percepção em si, mas na pretensão de que ela seja suficiente para capturar a totalidade do que está diante deles.
A estratégia, segundo Mintzberg, é como esse elefante. Ela pode ser tocada por diferentes ângulos: como um processo formal de planejamento, como uma construção emergente a partir da prática, como uma posição deliberada em relação ao mercado, como um padrão que se repete ao longo do tempo, como um jogo de poder, como uma expressão da cultura organizacional. Cada escola enxerga uma parte. E cada parte, por si só, pode gerar resultados valiosos — desde que não se confunda com o todo.
Essa multiplicidade de abordagens não é um problema em si. Ao contrário, ela reflete a riqueza e a complexidade do trabalho estratégico. O desafio surge quando essa variedade de lentes é tratada como um campo unificado, quando se espera que exista uma única definição, um único método ou uma única resposta correta. Em um esforço de simplificação, muitos acabam escolhendo uma abordagem preferida e tratando-a como verdade absoluta — seja ela baseada em planejamento, em diferencial competitivo, em propósito, em design thinking ou em dados. O resultado é um campo repleto de dogmas e contradições, onde o debate frequentemente se transforma em disputa entre modismos, e não em avanço do entendimento.
Essa realidade acadêmica e teórica se reflete diretamente no ambiente empresarial. Quando uma organização adota uma visão única de estratégia — normalmente herdada de um autor, uma consultoria ou uma prática consagrada — ela tende a estreitar sua capacidade de interpretar contextos diversos. Uma empresa guiada por uma visão exclusivamente analítica, por exemplo, pode ser brilhante em identificar oportunidades, mas lenta em agir. Outra, mais voltada à execução, pode se mover rápido, mas sem clareza sobre onde está indo. Algumas ficam reféns de planejamentos extensos que se descolam da realidade; outras apostam na intuição, mas sem estruturas para aprender com os erros.
O que aprendemos ao longo dos anos é que nenhuma dessas abordagens é inútil. Mas todas elas são, de algum modo, incompletas. E talvez o maior risco esteja justamente em achar que uma delas basta. A beleza — e o desafio — da estratégia está em saber navegar entre essas lentes, sabendo quando usá-las, quando combiná-las e quando questioná-las. O que exige, antes de tudo, uma consciência de que estamos diante de algo complexo, que não se deixa capturar facilmente em uma única definição. A estratégia, como o elefante, exige mais do que tato. Exige discernimento.
Um processo mental
Se há uma escola que ajuda a dar sentido à confusão em torno da estratégia, é a escola cognitiva. Embora menos popular que outras abordagens mais estruturadas — como o planejamento formal ou o posicionamento competitivo — ela nos parece a que mais se aproxima da experiência real de quem lida com decisões estratégicas no cotidiano. Porque, diferente das outras, ela não foca no processo ou no conteúdo da estratégia. Ela foca em quem pensa. Na cabeça do estrategista. E nas estruturas mentais que organizam as escolhas que ele ou ela faz.
Segundo essa abordagem, estratégia não é um plano, nem uma intenção, nem uma posição — é uma construção cognitiva. Um raciocínio. Uma combinação de percepções, hipóteses, julgamentos e apostas que vão se formando no pensamento de alguém diante de um problema complexo, ambíguo, sem resposta certa. E é exatamente por isso que ela é tão difícil de enxergar. Porque não se mostra. Não se imprime. Não se pendura na parede. A estratégia, quando levada a sério, é invisível.
Esse caráter invisível não é apenas um detalhe técnico. Ele é, talvez, uma das principais razões pelas quais o conceito de estratégia causa tanta confusão. Porque temos uma tendência natural — quase instintiva — de tentar entender as coisas a partir do que conseguimos ver. E o que conseguimos ver são ações. Vemos um novo produto sendo lançado, uma empresa mudando de canal, uma marca se reposicionando, uma fusão sendo anunciada. E dizemos: essa foi a estratégia.
Mas essas ações, por mais relevantes que sejam, não são a estratégia em si. Elas são manifestações concretas de um raciocínio que veio antes. De uma lógica que foi construída — com base em alguma leitura de cenário, alguma suposição sobre o comportamento do mercado, alguma crença sobre como vencer um determinado jogo. A estratégia não é o produto lançado. É o porquê de lançá-lo. Não é o movimento de M&A. É a tese que justificou a aposta. Não é a parceria anunciada. É a lógica que a tornou necessária.
Essa distinção é sutil, mas fundamental. Porque quando confundimos ações com estratégia, passamos a acreditar que estratégia é aquilo que podemos listar, documentar, apresentar. Mas isso é apenas a camada visível. O que sustenta essas ações — o pensamento estratégico propriamente dito — permanece fora do alcance. E quanto mais invisível algo é, mais difícil se torna ensiná-lo, replicá-lo ou mesmo reconhecê-lo. Daí nasce boa parte da dificuldade das organizações em construir uma linguagem comum sobre o tema.
Ao longo dos anos, vimos empresas premiadas por sua “estratégia de marca” quando, na verdade, o que estavam sendo reconhecidas era sua campanha. Ou então cases tidos como “estratégias de negócio” que, no fundo, eram decisões táticas bem-sucedidas. Isso não quer dizer que ações não importam. Elas são essenciais. Mas elas só fazem sentido quando derivam de um raciocínio mais profundo — que, muitas vezes, permanece implícito ou sequer foi claramente formulado. A estratégia, nesse sentido, não é visível aos olhos. É perceptível na coerência das escolhas. É rastreável no encadeamento das decisões. E é compreendida, de fato, quando conseguimos reconstruir o caminho mental que levou àquelas ações.
Talvez por isso a estratégia seja tão facilmente distorcida ou reduzida. Porque, no esforço de explicar, buscar exemplos e mostrar resultados, acabamos apontando para o que é mais fácil de descrever — aquilo que já aconteceu, que foi lançado, que virou manchete. E deixamos de lado aquilo que, embora mais difícil de verbalizar, é o que realmente importa: o pensamento que antecede a ação. A lógica que precede o plano. O julgamento que molda a decisão.
E é por isso que, ao reconhecer a natureza invisível da estratégia, começamos a dar um passo importante: deixamos de tratar o conceito como um rótulo para ações bem-sucedidas e passamos a encará-lo como aquilo que de fato é — uma maneira de pensar diante da complexidade.
Tudo é estratégico
Se a pluralidade teórica ajuda a explicar por que estratégia é um conceito difícil de definir, e sua natureza invisível dificulta ainda mais seu reconhecimento, há um outro fator que contribui silenciosamente para essa confusão: a linguagem. Mais especificamente, o modo como usamos — e abusamos — da palavra “estratégia” no cotidiano.
No português, o termo ganhou um uso tão abrangente que praticamente qualquer coisa pode ser chamada de estratégica. Uma reunião, uma contratação, uma jogada, um comportamento, um lugar na prateleira. O adjetivo “estratégico”, então, carrega ainda mais elasticidade. Pode significar algo importante, algo inteligente, algo necessário, algo bem pensado. Em alguns contextos, adquire até um tom de esperteza — quase como se fosse uma forma de manipulação bem executada. A depender de quem usa e de como usa, algo “estratégico” pode ser sinônimo de visionário… ou de malicioso.
Essa polissemia, que à primeira vista pode parecer riqueza de sentido, na prática funciona como um ruído constante. Porque, se tudo pode ser estratégico, nada é estratégico por definição. A palavra perde contorno. E com isso, perde também sua capacidade de orientar uma prática. Em sala de aula, é comum vermos alunos tentando aplicar o conceito de estratégia a qualquer situação que envolva intenção. Mas nem toda intenção é estratégica. Nem toda decisão importante é estratégica. Nem toda ação planejada é estratégica. E se tratamos tudo como se fosse, acabamos esvaziando o que estratégia realmente é — e o que ela exige.
Esse ruído não acontece apenas no uso cotidiano da palavra. Ele também aparece nas conversas entre times e lideranças. Quando alguém diz que determinada iniciativa precisa “subir para o estratégico”, o que exatamente está querendo dizer? Que ela deve ser discutida pela alta liderança? Que precisa se alinhar com objetivos de longo prazo? Que é uma prioridade? Ou que precisa de mais sofisticação no raciocínio? A frase pode significar todas essas coisas — ou nenhuma delas. E essa ambiguidade não é inofensiva. Ela impacta diretamente a clareza das decisões, o alinhamento entre áreas e a forma como a empresa estrutura sua própria capacidade de pensar e agir estrategicamente.
Além disso, o uso exagerado da palavra transforma a estratégia em um símbolo de status. Algo que confere prestígio a quem está associado a ela. Projetos estratégicos, cargos estratégicos, áreas estratégicas. Quanto mais distante da operação, mais estratégica uma função tende a ser considerada. E isso reforça uma falsa hierarquia, onde pensar é um privilégio de poucos e executar é uma função menor. Quando, na verdade, qualquer estratégia só se comprova na prática — e a distância entre pensar e fazer é um problema, não uma virtude.
Essa contaminação semântica pode parecer um detalhe periférico, mas tem efeitos concretos. Porque a linguagem que usamos para descrever uma coisa também molda a forma como a percebemos, como nos relacionamos com ela e como a ensinamos. Se a palavra “estratégia” carrega múltiplos sentidos, contraditórios entre si, o conceito perde precisão. E o que perde precisão, perde também poder de ação.
Reconhecer essa ambiguidade é parte do trabalho de resgatar o valor do pensamento estratégico. De devolver à palavra uma exigência de clareza. Não para restringir seu uso, mas para fortalecer sua função. Quando dizemos que algo é estratégico, precisamos ser capazes de explicar: estratégico por quê, para quem, em relação a quê, com base em qual lógica. Só assim a palavra volta a cumprir seu papel: nomear uma forma de pensar que nos ajuda a decidir melhor diante da complexidade.
A confusão das confusões: planejamento
Entre todas as fontes de confusão sobre o que é estratégia, talvez nenhuma seja tão persistente — e tão institucionalizada — quanto a sua confusão com o planejamento. Durante anos, acompanhamos empresas inteiras tratando esses dois termos como se fossem sinônimos. É comum ouvir que a “estratégia do próximo ano” será apresentada no comitê, ou que o time está “fechando o planejamento estratégico”. No imaginário corporativo, o termo “estratégico” passou a ser uma forma de conferir importância a qualquer plano. E o que deveria ser um raciocínio para enfrentar a incerteza, virou um calendário de entregas com cronograma e responsáveis.
Roger Martin, um dos pensadores mais influentes da estratégia contemporânea, resume com precisão esse dilema: “em vez de complementares, estratégia e planejamento passaram a ser tratados como substitutos. Em particular, o planejamento é usado sistematicamente como substituto da estratégia.” E ele vai além. O motivo dessa substituição não é apenas semântico. É também psicológico. O planejamento é mais confortável. É mais fácil explicar um conjunto de projetos com cronograma, metas e orçamento do que explicitar um raciocínio estratégico claro — com escolhas reais, hipóteses arriscadas e caminhos que poderiam ter sido diferentes.
Ao apresentar um plano a um conselho ou à liderança da empresa, gestores sabem que, se todos os projetos forem concluídos dentro do prazo e do orçamento, dificilmente serão cobrados pelos resultados. Mesmo que os números não venham. Mesmo que a empresa perca relevância ou competitividade. Afinal, o plano foi cumprido. Já uma estratégia real, como lembra Martin, não oferece essa rede de proteção. Se ela falha, a responsabilidade fica mais exposta. Não dá para terceirizar o erro para a execução. Por isso, em muitas organizações, a regra implícita parece ser: “não faça estratégia, faça planejamento”.
Mas essa escolha tem um custo alto. Porque, sem uma estratégia clara, o planejamento vira uma lista de tarefas — e não uma expressão de vantagem competitiva. A organização passa a se mover, sim, mas sem clareza de onde quer chegar. Trabalha muito. Entrega bastante. Mas joga para não perder, não para vencer. Enquanto isso, concorrentes menos ocupados, mas mais focados, constroem posições mais fortes no mercado.
O que Martin propõe é uma relação mais honesta entre os dois conceitos. Em vez de tratar estratégia e planejamento como equivalentes, ele sugere vê-los como complementares. A estratégia é a escolha integrada de caminhos que posicionam a organização para vencer. O planejamento é o detalhamento das iniciativas que precisam ser executadas para que essas escolhas se materializem. Em outras palavras: uma boa estratégia gera bons projetos. E esses projetos precisam ser bem planejados. Mas o processo não começa pelo plano — começa pela lógica.
Há um ponto especialmente elegante na forma como Martin trata essa relação. Ele afirma que o planejamento que se desdobra de uma boa estratégia não é tão diferente assim do próprio trabalho estratégico. Porque cada projeto, para ser bem executado, também exige escolhas. Também envolve julgamentos sobre prioridades, sobre alocação de recursos, sobre como entregar mais valor com menos desperdício. E essas decisões, em cadeia, vão gerando novos projetos, que também exigem novos raciocínios. “É como disse a velha senhora a William James: são tartarugas até lá embaixo”, escreve ele. Pensar estrategicamente não é um momento. É uma forma de operar.
Quando olhamos para dentro das empresas, essa proposta faz ainda mais sentido. Em vez de separar “quem pensa” de “quem executa”, uma boa estratégia cria uma lógica que pode ser compreendida e praticada por toda a organização — porque é clara, porque faz sentido, e porque permite que cada projeto seja avaliado em relação à sua contribuição para uma vantagem real. E quando isso acontece, o trabalho deixa de ser apenas bem feito. Ele passa a ser bem orientado.
É por tudo isso que estratégia segue sendo, mesmo depois de tanto tempo e tanta teoria, um conceito escorregadio. Um conceito que se desmancha nas mãos quando tentamos agarrá-lo com força demais. A multiplicidade de lentes teóricas dificulta o consenso. Sua natureza invisível desafia a materialização. A ambiguidade da linguagem enfraquece seu contorno. E sua confusão com o planejamento distorce sua função original.
Ao longo dos anos, vimos esse desentendimento se repetir em diferentes setores, em diferentes tamanhos de empresa, em diferentes estágios de maturidade organizacional. Não é falta de interesse. Não é falta de vontade. É falta de clareza. E essa falta de clareza não é apenas conceitual — ela tem consequências práticas. Ela compromete decisões. Ela fragiliza direções. Ela cria desalinhamento entre times. E, o mais grave, ela dá origem a um esforço contínuo de movimentação sem orientação real. Empresas que fazem muito, mas não sabem exatamente por quê. Organizações que se esforçam para entregar, mas não sabem o que estão tentando construir.
Ao reconhecer a complexidade do conceito, não estamos propondo relativismo. Pelo contrário. Estamos tentando recuperar sua força. Estratégia não precisa ser um mistério. Mas também não deve ser reduzida a um preenchimento de canvas ou à repetição de boas práticas. Pensar estrategicamente é, antes de tudo, pensar com clareza. Fazer escolhas com intenção. Formular hipóteses com coragem. E aceitar que não existe resposta certa sem antes enfrentar a dúvida de forma honesta.
Não é à toa que tantas organizações dizem ter estratégia, mas poucas conseguem agir de forma estrategicamente consistente. Ter uma estratégia de verdade exige mais do que slides bem montados. Exige uma lógica clara, coerente e viva — que ajude a tomar decisões, que oriente escolhas e que resista às pressões do dia a dia. Uma lógica que nem sempre será visível, nem sempre será popular, e nem sempre estará pronta para ser explicada. Mas que, quando bem formulada, se torna a força silenciosa por trás de tudo que realmente faz uma organização vencer.
É por isso que aqui sempre vamos olhar para a estratégia a partir de outra perspectiva. Não como um conjunto de ferramentas, nem como um processo linear, mas como uma forma de pensar. Uma disciplina mental. Um raciocínio aplicado à incerteza. Porque só quando paramos de procurar a estratégia no lugar errado — no plano, no artefato, no modelo pronto — é que começamos, de fato, a encontrá-la.