Um panorama estratégico sobre a história da Netflix

As histórias mexem com a gente. Elas despertam emoções, trazem novas perspectivas e aproximam pessoas. É assim que a Netflix traduz o que ela quer passar e significar às pessoas.
Em 1997, Reed Hastings e Marc Randolph tiveram a ideia de alugar DVDs pelo correio. Testaram o conceito, enviando para si mesmos um DVD, que chegou intacto. Daí nasceu a Netflix, que hoje está presente em mais de 190 países, com 151 milhões de assinantes pagos, e disponível em mais de 30 idiomas. De acordo com sites como a Fortune, seus serviços constituem cerca de 15% de toda a internet no mundo. E isso só foi possível devido a uma virada radical de modelo de negócio, de aluguel de DVDs para streaming.

A Netflix é um exemplo inspirador de uma empresa que mudou com sucesso seu modelo de negócios várias vezes. Um ano depois de seu início com DVDs, a marca mudou seu modelo de pagamento por uso para um de assinatura. Agora, após uma década, transformou sua proposta para streaming, criando um mercado que hoje é disputadíssimo entre grandes players como Amazon Prime Video, HBO Max, Hulu, Disney+, Apple TV+ entre outros. Mas a Netflix ainda é, de longe, a líder.

A evolução no mercado de negócio

Quando Reed Hastings e Marc Rudolph fundaram a Netflix, as locadoras de vídeo dominavam o mercado de entretenimento doméstico. Foi assim que viram uma oportunidade de fazer locações diferentes, como uma virada de jogo no mercado e uma grande aposta. O VHS ocupava o maior espaço e apenas 2% dos lares americanos possuíam um DVD player na época. Os engenheiros sabiam que se o mercado atingisse 20% das famílias, eles teriam um negócio viável. A visão fazia sentido.

O que podemos aprender com tudo isso é que essa modelagem de negócios não se trata apenas de como se monetiza. É sobre como você disponibiliza seu produto ou serviço ao público. É sobre o valor que você cria não só para a sua marca, mas também para as pessoas. O modelo de negócios de assinatura tem sido usado por jornais, revistas e periódicos acadêmicos tradicionais há décadas, mas foi “relançado” no mercado pela Netflix, e se tornou um modelo de sucesso para tantos outros negócios.

Compra de conteúdo e catálogo: como funciona

Para licenciar direitos de transmissão de diversas séries e filmes, a Netflix forma parcerias com provedores de conteúdo. Regularmente, negocia/renegocia contratos com vários provedores de conteúdo para licenciar direitos de streaming a vários filmes e programas de TV. Algumas licenças são limitadas por um tempo, enquanto outras duram para sempre. É por isso que, de vez em quando, você é avisado que alguma série vai sair do catálogo ou que outras (já conhecidas) estarão disponíveis em breve.

Por exemplo: os donos de um programa permitem que a Netflix transmita as temporadas do programa por X anos. O contrato de licença pode ser renovado após o término do prazo definido ou a Netflix remove de seu arquivo. Alguns conteúdos podem ser não exclusivos, portanto, também estão disponíveis em outros streamings. É por isso que algo pode estar disponível por meio de outro serviço de streaming, e não na Netflix. Exemplos: How to Get Away with Murder, The Office, etc.

Ao fim de 2020, a Netflix alcançou US $ 25,4 bilhões em ativos de conteúdo em seu balanço – desse total, o conteúdo licenciado teve US $ 13,7 bilhões no mesmo ano.

E o restante, onde foi parar? Na [já não tão] mais recente mudança de direção estratégica, que é produzir o próprio conteúdo em vez de licenciar de terceiros. O investimento nessa modalidade já está na casa dos $ 11,6 bilhões em 2020, ante US $ 9,8 bilhões em 2019.

A segunda grande virada: conteúdos originais

Como o negócio de catálogo se mostrava não só cada vez mais caro como insustentável do ponto de vista competitivo, em 2011 a Netflix anunciou que começaria a produzir seus próprios conteúdos originais, começando pelo aclamado [pelo menos nas primeiras temporadas] House of Cards. A aposta foi em um time estrela, começando pelo diretor David Fincher [Clube da Luta, Seven, A Rede Social etc.] e atores oscarizados como o [cancelado] Kevin Spacey. O grande diferencial aqui foi não só o investimento pesado como a liberdade que a Netflix escolheu dar para os seus criadores – algo muito diferente da praxe dessa indústria até então.

O sucesso da série deu gás para a Netflix seguir investindo e nunca mais tirar o pé do acelerador. Desde então, a empresa vem acumulando fenômenos culturais como La Casa de Papel [que originalmente não era da Netflix, mas passou a ser], Stranger Things e Round 6. Isso sem contar o prestígio junto à crítica com produções que têm avassalado premiações de TV como The Crown e o Gambito da Rainha.

E mesmo circuitos em que a Netflix [e todos os outros streamings por consequência] era mais barrada como o de cinema estão se rendendo à gigante. As aparições nas últimas edições do Oscar com filmes como Mank, Os Sete de Chicago e Destacamento Blood são provas de que as produções originais da Netflix batem de frente com qualquer estúdio clássico de Hollywwod como Warner, Universal e Disney.

E além da qualidade das produções, algo que não pode deixar de ser destacado é o formato, pelo menos do ponto de vista das séries. Enquanto a TV sempre foi entregando conteúdo “picado” para os espectadores, semana a semana, a Netflix inovou trazendo temporadas fechadas, com todos os episódios sendo disponibilizados de uma vez só. Isso inaugurou uma de suas marcas registradas que é o binde watching – a maratona de sofá que adoramos fazer quando engatamos em uma série. 

Tecnologia e dados: o algoritmo do sucesso

É praticamente unânime entre usuários de streaming que a Netflix tem o melhor sistema entre todos os players do mercado. A interface é melhor, a estabilidade não se compara e usabilidade é intuitiva e com muito pouca fricção. Esse tem sido desde sempre um dos maiores diferenciais da plataforma, sustentado até hoje.

E isso revela o quanto a Netflix tem apostado em tecnologia ao longo de toda sua história. Não só em tecnologia, mas, evidentemente, em dados. E esses dados têm sido totalmente orientados para uma melhor experiência do usuário, em pelo menos dois pontos de vista.

Primeiramente, para o consumo cotidiano de conteúdo. Quantas vezes você já apertou o botão Netflix para se livrar do tédio e percebeu que precisava escolher o que assistir? A plataforma faz tudo para recomendar uma opção com grande probabilidade de você assistir, deixando esse conteúdo atraente aos olhos. É o famoso algoritmo, que aconselha o que ver, também sugere produções que mais se encaixam em gostos, indicando por vezes títulos pouco conhecidos, mas que parecem perfeitos. E, claro, cada vez mais majoritariamente conteúdos originais da própria empresa. Sim, a Netflix é capaz de oferecer uma diversidade de produtos, que têm sido pensados sob medida para os seus assinantes.

Mas o segundo aspecto talvez seja ainda mais interessante. A Netflix ficou conhecida por usar dados não só para distribuir, mas também para criar seus conteúdos. Talvez o mais clássico seja a própria produção de estreia, House of Cards. Antes mesmo de iniciar as gravações, a Netflix tinha um bom indício de que seria sucesso. O algoritmo previu, com dados recolhidos ao longo de anos. Por exemplo, eles sabiam que os assinantes gostavam muito do trabalho de David Fincher (diretor). Kevin Spacey (ator principal) também era um dos mais seguidos nas redes. Além disso, a versão original da minissérie, transmitida em 1990 na BBC, teve grande adesão. Essa combinação dava toda a pinta de que a série iria bombar. E, de fato, aconteceu.

Esse é apenas um exemplo de como a estratégia baseada em dados permite investir bem o dinheiro, diminuindo riscos e criando conteúdos de qualidade. Outro conteúdo que ficou super conhecido por esse aspecto foi Stranger Things, desenhado sob medida para a geração saudosista dos anos 80, com todos os elementos para deixá-los malucos pela série.

Ganhando o mundo

A expansão mundial da Netflix é hoje um dos maiores fatores para o seu sucesso Em 2017, a marca já estava em mais de 190 países e, atualmente, cerca de 73 milhões de seus assinantes estão fora do país americano. No segundo trimestre de 2018, obteve um lucro que excedeu as receitas do setor pela primeira vez. Uma conquista notável para uma empresa que estava apenas nos EUA antes de 2010 e em 50 países até 2015.

A empresa garante ofertas de conteúdo região por região e, às vezes, país por país, aumentando cada vez mais suas produções locais. E elas próprias são responsáveis por alguns dos maiores fenômenos da plataforma como a coreana Round 6 e a espanhola La Casa de Papel. Por mais que muitas vezes os assinantes de grandes mercados como os EUA prefiram programação no idioma local, a Netflix vem conseguindo mudar isso aos poucos – e com muito sucesso.

Isso porque, apesar de sua internacionalização rápida, a Netflix implementou um modelo de operações centrado no cliente, fazendo experiências com dados de uso do cliente para determinar quais ofertas funcionam. Por operar em muitos países, experimentou abordagens e mercados diversificados. Conforme o número de assinantes internacionais aumenta, o desempenho de seus algoritmos melhora. E, claro, com a crescente prevalência de mercados onde o vencedor leva tudo, as empresas precisarão seguir uma estratégia de internacionalização semelhante à da Netflix.

As lições chave para aprender com a Netflix

Para resumir, separamos 3 coisas que podemos aprender com a jornada da Netflix desde o seu início, do ponto de vista estratégico.

#1 – Foco no cliente e na entrega de qualidade
A Netflix sempre se concentrou em fazer muito bem feito tudo o que se propõe. Essa dedicação à qualidade – seja a da experiência da marca ou do conteúdo – é o que ajudou a empresa a cultivar uma ampla base de assinantes e, mais do que isso, um público fiel.

#2 – Apostas ousadas se pagam
Lá atrás, a escolha de Hastings pelo modelo de streaming colocou em dúvida a prosperidade da empresa e o futuro da marca. Imagine onde a Netflix estaria hoje se ele tivesse escutado os pessimistas que diziam que o streaming não passava de uma moda passageira. E quando a marca decidiu criar conteúdos originais, era uma aposta de altíssimo risco. Custa muito dinheiro levantar uma produção como House of Cards. Mas fazia sentido a longo prazo como vantagem competitiva e essa hoje é uma decisão inquestionável, seguida por todos os seus concorrentes.

#3 – Dados, dados, dados
Desde o princípio, as decisões da Netflix são orientadas por dados de seus consumidores. De forma não só reativa, mas propositiva. Uma empresa contemporânea se move assim, usando dados para melhorar a experiência e, no limite, para criar novos produtos e ofertas. Sem esse arcabouço de data science, provavelmente a empresa não estaria onde está hoje – e evoluindo.

Como escreveu Bill Taylor à Harvard Business Review: não há dúvida de que muitos líderes podem ter vislumbres do futuro da concorrência e da inovação, observando como a empresa faz negócios.

Apesar de a maioria das análises da ascensão e reinvenção da Netflix enfatizam sua estratégia e tecnologia. Mas o que impressiona é que quem faz a plataforma não pensa tão rigorosamente sobre pessoas e cultura quanto sobre o streaming e o conteúdo digital. A Netflix inventou (e reinventou) uma gama de práticas para conectar o que a empresa pretende alcançar no mercado de como organizar o local de trabalho.

Em 2017, atualizou seu manifesto na Netflix Culture, uma declaração detalhada de seus princípios, políticas e práticas com relação ao fator humano nos negócios. “Muitas vezes os valores são vagos e ignorados. Os verdadeiros valores de uma empresa são mostrados por quem é recompensado ou quem o dispensa”. Ou seja, multinacionais e organizações de grande porte, por meio disso, entendem ainda mais que devem trabalhar de forma tão diferenciada quanto esperam competir – investir em pessoas, não somente em estratégias. Ou melhor, casar ambos os assuntos para garantir resultados.

É sempre perigoso aprender com o desempenho de uma única organização – mesmo as empresas mais bem-sucedidas podem enfrentar contratempos e decepções. Ainda assim, à medida que mais negócios recorrem à Netflix para entretenimento – e à estratégia-, a empresa torna-se uma fonte de insights sobre o futuro dos negócios e do trabalho. Tudo isso ajuda a proporcionar a melhor experiência para os streamings lovers.