Quando as métricas destroem a estratégia

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O artigo de capa da edição de setembro-outubro de 2019 da revista da Harvard Business Review é pra lá de interessante e traz uma discussão sobre o potencial perigo das métricas para a estratégia das empresas. Isso é um aparente contrassenso, já que atualmente é difícil ter qualquer discussão sobre estratégia que não desemboque naturalmente na demanda por métricas de sucesso, os famosos KPIs. Afinal, métricas e indicadores são aquilo que dão concretude à estratégia. Se a estratégia é a planta da casa, o blueprint, as métricas sãos os tijolos que a fazem ficar de pé de maneira real.

Porém, nesse ímpeto por mensurar, definir metas e acompanhar a performance, podemos perder a estratégia de vista e passar a nos focar mais na métrica, que, no fim das contas, é apenas a sua representação.

Um caso que ficou famosos recentemente foi a da Wells Fargo, que abriu 3,5 milhões de contas de depósito e cartão de crédito, sem o consenso dos clientes, como um esforço para implementar sua estratégia de cross-selling. Quando isso veio à tona, dá para imaginar a catástrofe jurídica, administrativa e de relações públicas.

Porém, investigando a fundo o que aconteceu, é possível perceber que a Wells Fargo nunca teve de fato uma estratégia de cross-selling. O que ela tinha era uma métrica disso. Uma evidência disso é o seu Relatório de Dividendos de 2016 traz a seguinte frase:

“best align our cross-sell metric with our strategic focus of long-term retail banking relationships”

 Nesse sentido, a estratégia deles é a de construir relações de longo prazo com os clientes. Cross-selling era uma métrica para acompanhar o sucesso dessa estratégia. Mas, ironicamente, no fim das contas, o foco na métrica acabou destruindo a estratégia e o banco perdeu inúmeros clientes de longa data.

E isso acontece com tanta frequência, que o efeito da substituição da estratégia pela métrica ganhou até um nome: surrogation. É um viés cognitivo que demonstra como onde quer que uma métrica seja apresentada, nosso cérebro tende a querer mexer nela, acima de qualquer outra coisa mais fundamental [como a estratégia ou o objetivo geral].

Porém, é preciso entender que métricas se baseiam na ideia de proxy [aproximações] e são imperfeitas por natureza para traduzir uma ideia, uma intenção de negócio.

Pegue um exemplo meramente ilustrativo de uma companhia que se coloca a estratégia de encantar o seu consumidor, de satisfazê-lo. E uma das métricas para entender se isso está rolando é a pesquisa de satisfação, mais especificamente, o score de 0 a 10 da satisfação geral.

Nessa pegada, as pessoas da empresa começam a se preocupar mais com otimizar o score do que em entregar de fato a estratégia e promover uma experiência excelente para o cliente. E há muitos jeitos de fazer um sem fazer o outro. Por exemplo, criando formas artificiais de fazer a pessoa dar um 10, entendendo que qualquer outra nota é falha, ou seja, uma não resposta. Ou mesmo o fato de encher a paciência da pessoa até ela responder a pesquisa, o que naturalmente já não está alinhado com a estratégia de encantar e satisfazer os clientes. Na verdade, é o exato oposto disso.

Pegando outra ilustração teórica, entendemos como o efeito de surrogation fica ainda mais preocupante quando estratégia e métrica são mal alinhadas.

Imagine se uma empresa tem no core da sua estratégia promover alta qualidade de entrega. Se isso é medido via questões técnicas de produção e o cumprimento de alguns padrões, o efeito do surrogation tende a não ser tão nocivo, porque a métrica promove qualidade de alguma maneira. Agora, se a medição vira sobre o índice de devoluções, como proxy de qualidade, pode gerar uma grande distorção, já que há muitos métodos de evitar uma devolução, que não tem a ver com qualidade. Pode ser , por exemplo um processo interno que classifica algumas devoluções de outra maneira, como “retrabalho” ou “aperfeiçoamento”. E isso faz cair naturalmente o número global de devoluções.

Na Wells Fargo, reputa-se o problema ao programa de incentivo à equipe comercial, mas isso provavelmente é só um sintoma, já que durante a investigação de como isso aconteceu, muitos funcionários falam bem mais da pressão que sofriam por metas do que o próprio programa de incentivo. 

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Outro problema era a filosofia de que era aceitável vender 10 contas de baixa qualidade para conseguir uma boa ou mesmo empurrar produtos que as pessoas não precisavam ou queriam, como um “custo natural de fazer negócios”. O mantra do CEO era “Eight is great”, querendo dizer que o ideal era cada cliente ter pelo menos 8 produtos do banco.

Na ponta, os funcionários tentavam fazer isso a todo custo. E a estratégia que era de criar relações de longo prazo passa a ser substituída por pessoas tentando chegar a qualquer custo nos 8 produtos por clientes.

Para evitar o efeito de surrogation, que é cognitivo, precisamos entender como ele acontece. Daniel Kahneman e o professor de Yale Shane Frederick estabeleceram três condições para o efeito: 

1. O objetivo ou estratégia é muito abstrato
2. A métrica da estratégia é concreta e tem visibilidade
3. Os funcionários aceitam, pelo menos de forma inconsciente a substituição da estratégia pela métrica

 A ideia é que combater essas três questões pode ajudar a mitigar o efeito de surrogation. E o artigo usa uma empresa que teve consultoria de um dos autores, a Intermountain Healthcare, que serve como benchmark para as três frentes. 

A primeira delas é tentar não tratar estratégia como algo simplesmente comunicado de cima para baixo, em uma espécie de rollout da decisão. Para evitar o surrogation, o ideal é engajar no desenvolvimento da estratégia as pessoas que vão implementá-la na ponta.  

A Intermountain Healthcare, que tinha a estratégia de gerar tratamentos de alta qualidade e baixo custo. Em uma frente de tratamento para um tipo de for nas costas, foi demonstrado por estudos que essa dor tende a passar naturalmente em semanas e que muitas vezes é mais prudente esperar do que sugerir uma intervenção de medicamentos ou cirúrgica. Como métrica, avaliava-se se os médicos esperavam pelo menos 4 semanas, o que pode claramente gerar um efeito nocivo de empurrar com a barriga, para cumprir a meta. Mas como a estratégia foi envolvida usando os próprios médicos, eles entenderam o contexto e incutiram sobretudo a ideia de que, antes de qualquer coisa, precisam fazer algo de alta qualidade e baixo custo. E que nesse caso a melhor alternativa era esperar. Mas não por esperar em si e sim para atender a estratégia.

Nick Bassett, um dos executivos da empresa, atestou que:

“without question, when physicians are involved in designing objectives, they better understand those objectives, and when they understand the objectives, they have proven time and time again their ability to determine the right course of action, often in spite of a particular metric.”

 

Outra questão importante é o tipo de incentivo que se faz para o cumprimento de determinadas métricas e como isso pode acelerar muito o efeito do surrogation. Imagine se houvesse um incentivo financeiro para os médicos da Intermountain Healthcare, que ganhariam toda vez que recomendassem as pessoas esperarem 4 semanas. Talvez até os médicos bem intencionados e mesmo os que participaram do desenvolvimento da estratégia, fossem levados ao surrogation, esquecendo todo o contexto da decisão tomada.

Em vez disso, eles definiram uma meta de 80% para essa recomendação de esperar, deixando claro que não era para os médicos fazer aquilo sempre, mas que normalmente é a melhor decisão para entregar a estratégia de alta qualidade e baixo custo. 

Por fim, talvez uma das melhores práticas para preservar o valor das métricas e não cair no surrogation é a usar múltiplas métricas de sucesso e não apenas uma. Fica mais difícil as pessoas fazerem a substituição da estratégia por 3, 4 ou 5 coisas distintas.

Ficando ainda no caso da Intermountain há algumas métricas combinadas como a satisfação do paciente, algumas condições específicas da sua saúde [ex: nível de A1C de diabete dos pacientes], esforços preventivos [ex: acertos de periodicidade em mamografias por exemplo] e o custo total do tratamento.

Claro que isso complica bastante o esforço de mensuraçnao, já que multiplica suas frentes.

Porém, fazer essas três coisas certamente geram mais benefícios do que complicações, porque evitam um efeito dos mais nocivos, exatamente pelo seu paradox. Afinal, o remédio que cura também pode matar.