O novo velho papel das empresas

[Nota: boa parte desse conteúdo foi extraído textualmente da newsletter do Meio, que recomendamos muito a todos]

[Nota: boa parte desse conteúdo foi extraído textualmente da newsletter do Meio, que recomendamos muito a todos]

Essa semana a Business Roundtable, uma associação que junta CEOs de algumas das maiores empresas dos Estados Unidos, publicou um manifesto com uma nova declaração de propósito para uma corporação. O manifesto foi assinado por quase 200 CEOs, incluindo Apple, Amazon, GM, AT&T, Boeing, Caterpillar, JP Morgan, Coca Cola, Citygroup, IBM, J&J entre outras. O conteúdo gerou bastante discussão, em diferentes fóruns, sejam eles sociais de negócios ou acadêmicos.

Antes de entrar no seu conteúdo em si, queremos propor um exercício.

Imagine que uma cirança – seu filho, seu sobrinho, o flho de um amigo – te pergunte de sopetão: “senhor adulto, para que serve uma empresa?”. É uma pergunta quase estranha [típica dos pequeninos], mas de resposta relativamente fácil no imaginário coletivo. De forma grosseira, superficial, mas com bom grau de correção, provavelmente a resposta seria: “para ganhar dinheiro”.

Hoje é assim que enxergamos uma empresa: uma organização privada com a finalidade de lucro. E ponto. Mas nem sempre foi assim. Como escreveu Andrew Ross Sorkin, editor de negócios do New York Times:

“Por quase 50 anos, após a publicação em 1932 do seminal artigo acadêmico A Corporação Moderna e a Propriedade Privada por Adolf Berle Jr. e Gardiner Means, empresas eram gerenciadas pensando em todos os seus stakeholders. Eram tempos definidos por sindicalização dos trabalhadores, fundos corporativos de aposentadoria, e de doações de empresas que investiam pesadamente em suas comunidades e no tipo de pesquisa que garantia crescimento futuro. Foi um período que ficou conhecido como gerencialismo.”

Curioso perceber que em determinado momento, ainda na esteira da crise de 1929, começou-se a criar um pensamento mais amplo do papel das empresas, envolvendo não só seus consumidores e acionistas, mas toda a cadeia de trabalhadores, a comunidade, o meio ambiente e tudo o que cerca uma corporação com fins lucrativos. Afinal, ter fim lucrativo não significa que esse deve ser o único propósito de existência de uma empresa, que não pode ser deslocada de sua função social maior.

Mas nem todo mundo concorda com isso.

O tal do “gerencialismo” durou até meados da década de 70, quando passou a ser associado a executivos acomodados, preocupados em manter suas empresas inchadas em vez de pensarem nos seus acionistas.

Coincidiu com o surgimento de Milton Friedman, economista da Universidade de Chicago, que pregava que o único propósito de uma empresa é o lucro, e ridicularizava qualquer um que sugerisse que empresas deveriam se preocupar com outras coisas.

Surgiu aí o conceito de democracia de acionistas. Estes, junto de um novo tipo de investidor, conhecido como predador corporativo, começaram a pressionar os executivos a cortarem qualquer tipo de gordura de seus orçamentos. Demissões aumentaram, investimento em pesquisa e desenvolvimento foi cortado, fundos de aposentadoria trocados por previdência privada. Houve um grande aumento de fusões que buscavam apenas reduzir custos. Enquanto isso, os lucros cresciam junto dos dividendos.

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Hoje, como bem sabemos, há uma forte desconfiança das pessoas sobre mega corporações, que cada vez mais são vistas como gananciosas, fomentadoras de desigualdades, de discriminações de gênero, etnia etc. Fora a percepção de corrupção em tantos escândalos que se seguem.

E é nesse contexto que voltamos ao manifesto da Business Roundtable. Em parte, seu conteúdo diz o seguinte:

“Por vezes demais o trabalho duro não é recompensado, e pouco tem sido feito para ajudar os trabalhadores a se ajustarem às mudanças aceleradas que afetam a economia. Se as empresas falharem em reconhecer que o sucesso de nosso sistema depende de crescimento inclusivo de longo prazo, muitos irão começar a questionar o papel dos grandes empregadores em nossa sociedade.

Com essas preocupações em mente, nós da Business Roundtable estamos modernizando nossos princípios sobre o papel de uma corporação. Desde 1978 publicamos periodicamente um documento com o propósito de uma corporação, desde 1997 este documento definia que corporações existem principalmente para servir seus acionistas. Está claro, hoje, que essa frase não descreve mais com precisão as formas em que nós e nossos membros temos atuado na criação de valor para todos os nossos stakeholders, cujos interesses de longo prazo são indissociáveis.

Empresas cumprem um papel essencial na economia, criando empregos, promovendo inovação e fornecendo bens e serviços. Enquanto cada uma de nossas empresas individualmente persegue seus próprios propósitos e objetivos, compartilhamos um compromisso fundamental com funcionários, fornecedores e clientes.

Nos comprometemos a: Entregar valor para nossos clientes buscando sempre exceder suas expectativas. Investir em nossos funcionários, começando por compensá-los de forma justa e oferecendo benefícios e treinamento para ajudá-los a se adaptar às mudanças do mundo. Promover inclusão, dignidade e respeito. Lidar de forma justa e ética com nossos fornecedores. Suportar as comunidades onde estamos inseridos, proteger o meio ambiente buscando práticas sustentáveis em todos os nossos negócios. Gerar valor de longo prazo para nossos acionistas, que fornecem o capital que precisamos para investir, crescer e inovar de forma comprometida e transparente.”

Sem dúvida o reconhecimento e a volta em alguns aspectos ao antigo gerencialismo nos parece um grande passo. Empresas hoje representam um poder enorme na nossa sociedade, não só econômico, mas político e social. Visando tão somente o lucro, esse poder é necessariamente canalizado em grande parte para o mal coletivo, pois invariavelmente gerará abuso conta pessoas, comunidades e o meio ambiente.

[Parênteses: Um bom conteúdo para entender melhor esse papel mais holístico de uma empresa na sociedade para além do lucro é o capítulo sobre mercado de ações da série Explicando, da Netflix em parceria com a Vox.]

Mas, infelizmente, há motivos para se suspeitar que o manifesto da Business Roundtable vá mudar pouca coisa. Algumas grandes empresas, como Alcoa e GE, não assinaram o manifesto. O Conselho de Investidores Institucionais, que representa muitas das mesmas empresas que fazem parte da Business Roundtable, e ainda vários dos maiores fundos de pensão do país, distribuiu uma vigorosa resposta em que discorda veementemente das ideias contidas no manifesto:

‘Responsabilidade para todos significa não prestar contas a ninguém. É papel do governo, não de empresas, atender qualquer objetivo da sociedade que tenha pouco ou nenhuma conexão com a geração de valor a longo prazo para os acionistas.’

A visão de que a empresa deve pensar em lucrar e o governo cuida do resto parece imperar no pensamento neoliberal e em grande parte da sociedade. O grande problema de pensar assim é que você se exime de qualquer responsabilidade sobre o meio que está inserido. E isso tem cada vez menos espaço em uma sociedade que entende que a responsabilidade sobre o todo é compartilhada entre todos. Inclusive as empresas.